Economia

Nem débito, nem crédito, nem Pix: fiado resiste em pequenos negócios, onde ainda se ‘pendura’ a conta

Mesmo com tantos meios de pagamento, o fiado se mantém em pequenos estabelecimentos, como bares e restaurantes, aponta pesquisa. Caderninho dá lugar a bloco de notas no celular

Agência O Globo - 21/03/2024
Nem débito, nem crédito, nem Pix: fiado resiste em pequenos negócios, onde ainda se ‘pendura’ a conta

No Bar Maravilha, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, não é incomum que aqueles clientes mais fiéis e assíduos peçam para “pendurar a conta”. No tempo do “débito ou crédito?” ou do “faz um Pix”, a expressão parece um tanto quanto antiquada, mas o bom e velho fiado está mais vivo que nunca.

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O caderninho de quem acerta depois não existe só no Maravilha. Levantamento feito pela Web Automação, empresa de soluções de vendas e tecnologia para negócios, identificou que mais de 400 estabelecimentos no Brasil fizeram fiado no ano passado, com a modalidade de pagamento movimentando R$ 4,3 milhões.

Para João Alberto Fontes, sócio do Maravilha, é uma forma de fidelizar ainda mais a clientela:

— São pessoas que sempre passam por aqui, que já conhecemos. Acabam promovendo o bar, trazendo outros clientes e consumindo mais.

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Segundo a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), foram 42 bilhões de transações no Pix em 2023 e outras 39,4 bilhões de operações com cartão de crédito, débito, boleto e outros meios de pagamento no país. Com tantas possibilidades, o consultor e mentor de varejo da Azo Negócios, Marco Quintarelli, explica que o fiado é típico de estabelecimentos menores:

— É uma venda de relacionamento. Somente pessoas muito próximas têm esse tipo de relação de compra e venda.

Celular, no lugar do caderninho

Rio, São Paulo e Minas Gerais, estados mais populosos, lideram o ranking do fiado na pesquisa. Restaurantes, lanchonetes e bares são os estabelecimentos em que é mais comum, mas isso não é uma regra. De uma família de comerciantes, Gabriel Alves, de 27 anos, adotou o fiado quando abriu uma barbearia em Niterói, no Grande Rio, mas só para alguns clientes.

— O fiado é porque a pessoa tem alguma dificuldade de pagamento, seja porque o cartão não virou ou ainda não recebeu e vai precisar esperar até o quinto dia útil para pagar — explica.

Com a tecnologia, até o fiado precisou se reinventar. Em vez de caderninho, Alves anota o fiado no bloco de notas do celular. No Maravilha, o fiado tem lugar no sistema operacional que controla as contas do bar, viabilizado pela Web Automação após a pesquisa.

— Criamos um sistema que faz o gerenciamento de saldo do vendedor e consegue até limitar o crédito — diz Araquen Pagotto, CEO da empresa.

Mas engana-se quem pensa que a caderneta do fiado foi aposentada. O método tradicional é o adotado por Paulo Salles, de 64 anos, que há mais de 40 tem um bar em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio. Ele conta que costuma vender fiado para os “mais chegados”, que não têm condições de pagar na hora:

— Comércio de bairro sempre vai ter um fiadinho ou outro. Para ter controle, ainda sou à moda antiga, anoto tudo no meu caderninho.

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João Régis dos Santos, de 70 anos, dono de uma mercearia também em São Gonçalo, é outro que tem um caderninho para anotar quando vende fiado, o que só concede a pessoas próximas:

— As pessoas às vezes chegam com dificuldade, precisam comprar e não têm o dinheiro na hora. Eu vendo e anoto tudo.

O risco do crédito informal

Por se tratar de uma venda baseada na confiança, o fiado é um risco para quem usa o crédito informal e para quem oferece. O consumidor pode perder a mão, gastar demais, esquecer e não se preparar para pagar a dívida no fim do mês. Para o comerciante, o “cano” pode prejudicar a gestão orçamentária do estabelecimento, alertam especialistas em finanças.

— É um risco também quando se pensa numa boa gestão financeira do comércio, pois tenho que desembolsar primeiro para fazer a aquisição de produtos, pagar (o fornecedor) e não vou receber naquele momento (da venda) — diz Cintia Senna, sócia executiva da DSOP Educação Financeira.

Risco para o consumidor

Quintarelli ressalta que, em um período marcado por insegurança econômica, qualquer desequilíbrio no orçamento pode afetar o estabelecimento. Como hoje há vários meios de pagamento que adiam o débito do consumidor deixando garantias ao vendedor, como cartão de crédito, ele acredita que o fiado está com os dias contados.

O presidente da Associação Brasileira de Profissionais de Educação Financeira, Reinaldo Domingos, diz que o fiado traz riscos para quem vende e para quem compra:

— É praticamente um risco de 100%, mesmo que seja uma pessoa que compra há muitos anos. Para quem compra, há risco de descontrole financeiro.

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Há quatro décadas fazendo fiado, Salles, do bar de São Gonçalo, não escapou dos caloteiros e já sentiu esse risco no bolso.

— Se eu recebesse tudo que tinha para receber desde que comecei no comércio, estaria rico hoje — brinca.