Economia

'Estranhos' escolhidos aleatoriamente para gastar fortuna de herdeira bilionária se reúnem pela 1ª vez na Áustria; entenda

Integrantes do 'Conselho do Bem' vão ajudar a desenvolver ideias sobre como 'redistribuir' riqueza equivalente a R$ 134 milhões

Agência O Globo - 15/03/2024
'Estranhos' escolhidos aleatoriamente para gastar fortuna de herdeira bilionária se reúnem pela 1ª vez na Áustria; entenda
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil/Arquivo

As 50 pessoas escolhidas para ajudar uma herdeira bilionária a gastar 25 milhões de euros de sua fortuna (o equivalente a R$ 135,4 milhões, na cotação atual) vão se reunir pela primeira vez neste fim de semana. Marlene Engelhorn, de 32 anos, compõe a dinastia de um império farmacêutico europeu e decidiu destinar parte de sua herança a uma espécie de administração coletiva.

Esses "estranhos", todos residentes na Áustria, terra natal de Marlene Engelhorn, vão se encontrar pela primeira vez num hotel em Salzburgo. Apelidados de Guter Rat — ou Good Council (Conselho do Bem, em tradução livre), eles foram escolhidos por meio de um processo estatístico conduzido pelo grupo de investigação Foresight e são de diferentes lugares, idades, origens socioeconômicas, entre outros fatores demográficos elencados num esforço de compor um grupo representativo da população.

— Sou apenas um cérebro, sou apenas uma pessoa e, portanto, para mim, é um enorme alívio saber que o processo de redistribuição é muito mais legítimo, completo e democrático do que alguma vez poderia fazê-lo — disse ela, em entrevista. — Ninguém precisa de outra fundação.

Assembleia dos cidadãos

Engelhorn cresceu frequentando escolas particulares e depois a Universidade de Viena, onde estudou Literatura e Língua alemãs. Ela teve a ideia do "Conselho do Bem" depois de ler sobre as assembleias de cidadãos, uma ferramenta democrática que está ganhando popularidade na Europa. Na ausência de uma cobrança "justa" de impostos, pareceu, para ela, a forma mais igualitária de partilhar a sua riqueza.

— A filantropia só deve ser levada a sério quando considera a sua própria abolição — disse ela. — Mal posso esperar para que meu governo me cobre impostos. Eles não vão fazer isso tão cedo. Mas precisamos que essa riqueza seja redistribuída pela sociedade.

O projeto foi anunciado em janeiro, quando a equipe Guter Rat, com a ajuda da Foresight, enviou convites para 10 mil pessoas selecionadas aleatoriamente em toda a Áustria com mais de 16 anos. Engelhorn realizou uma conferência de imprensa anunciando o empreendimento para que as pessoas não pensassem que fosse uma farsa.

A resposta foi imediata: nos primeiros dois dias, os recrutadores receberam 700 e-mails de pessoas que tinham ouvido falar do plano, muitas delas partilhando as suas próprias ideias sobre como gastar o dinheiro, disse Alexandra Wang, que lidera o projeto. (Wang e Engelhorn se conheceram quando a primeira arrecadava fundos para um think tank progressista ao qual a herdeira fazia doações.)

Ao todo, das 10 mil pessoas para as quais o convite foi enviado, 1.424 registraram-se para participar, o que é uma taxa de resposta "invulgarmente elevada", disse Martin Haselmayer, da Foresight. Uma taxa de 5% a 7% é normal para assembleias de cidadãos, disse ele.

Seis reuniões até junho

As 50 pessoas selecionadas se reunirão seis vezes até junho. Os dois primeiros encontros serão principalmente educativos: neste fim de semana, depois de recolherem os produtos da Guter Rat e se instalarem no hotel de Salzburgo, os participantes ouvirão dois economistas sobre a distribuição de riqueza. O segundo fim de semana envolverá uma conversa filosófica mais ampla sobre como é uma sociedade justa, disse Wang, que espera que o projeto crie um roteiro para outros.

— Este é um projeto-farol que espero que inspire algumas pessoas a repensar seus valores — disse ela.

A partir do terceiro fim de semana, os participantes irão realmente investigar opções para o destino do dinheiro de Engelhorn e tentar decidir o que fazer com os 25 milhões de euros até o verão europeu. Se todos os 50 membros não chegarem a um acordo sobre para onde o dinheiro deve ir, ele será devolvido a ela, mas Engelhorn e Wang não esperam que isso aconteça.

Além de ser o rosto do projeto, Engelhorn não está mais envolvida no processo. Ela fará um breve discurso de agradecimento aos participantes neste primeiro fim de semana.

— Não estou tão fixada no resultado — disse ela. — O mais importante para mim é a discussão pública sobre riqueza e igualdade.

Doar a fortuna e desencadear debates

Marlene Engelhorn não tinha pensado muito na riqueza que a cercava enquanto crescia. Ela sempre considerou a fortuna, herdada de Friedrich Engelhorn, o fundador da gigante química alemã BASF, no século XIX, como o dinheiro da sua família, e não dela.

Depois, ela recebeu mais de 25 milhões de euros de sua falecida avó bilionária em 2022. Ela já havia ajudado a fundar o grupo TaxMeNow e formado uma comunidade com vários progressistas (algumas pessoas ricas cheias de culpa) defensores da redistribuição de riqueza.

Então Engelhorn teve uma ideia: deixar 50 estranhos decidirem como doar sua fortuna. O objetivo dela não é apenas doar 25 milhões de euros, mas também desencadear debates sobre a desigualdade econômica. Ela está frustrada porque os seus lucros inesperados não foram tributados – a Áustria eliminou o seu imposto sobre heranças em 2008 – e não vê a filantropia tradicional como uma boa solução porque ainda lhe dá demasiado poder.

A abordagem de Engelhorn é um exemplo da forma como os herdeiros de dinastias estão escolhendo um caminho diferente das gerações anteriores. Seu ancestral, Friedrich Engelhorn, deixou a BASF no final do século XIX e investiu sua fortuna na antecessora da Boehringer Mannheim, que foi comprada pela gigante farmacêutica suíça Roche Holdings AG por US$ 11 bilhões, em 1998. Parte do desejo de Engelhorn de doar sua fortuna veio das brechas fiscais que sua família usou durante essa venda.

— O conhecimento sobre a forma como a riqueza foi acumulada nestas empresas, e na minha família, reforçou a minha convicção de que a riqueza extrema como poder deve ser regulamentada — disse ela.