Internacional

Putin até 2030? Rússia vai às urnas em eleição 'de cartas marcadas' e críticas veladas ao governo

Sem rivais competitivos e no controle da máquina estatal, presidente abriu mão de campanha e debates e caminha para a quinta vitória em 24 anos

Agência O Globo - 14/03/2024
Putin até 2030? Rússia vai às urnas em eleição 'de cartas marcadas' e críticas veladas ao governo
Vladimir Putin - Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Os russos começam nesta sexta-feira a votar em uma eleição presidencial cujo resultado parece definido antes mesmo do fechamento das urnas. Sem concorrentes viáveis ou que ameacem seu favoritismo, Vladimir Putin deve garantir ainda no primeiro turno mais um mandato, e permanecer no cargo até 2030, pelo menos. A votação começou, de maneira antecipada, em algumas áreas isoladas e em territórios ocupados na Ucrânia, e segue até o domingo.

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A confiança em uma nova vitória — que seria a quinta desde 2000 — foi tanta que o presidente sequer fez campanha ou participou de debates. Em agosto do ano passado, antes da confirmação da candidatura, o secretário de Imprensa do Kremlin, Dmitry Peskov, disse em uma sincera entrevista ao New York Times que, além de esperar uma reeleição fácil, considerava que a disputa “não era realmente uma democracia, mas sim uma custosa burocracia”.

Pouco depois, Peskov afirmou ao site RBK ter sido mal interpretado pelo jornal americano, mas completou afirmando que “teoricamente” a votação não era necessária porque “era óbvio que Putin será reeleito”.

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Tamanha certeza de algo que acontece sem sobressaltos desde 2004 — com a breve exceção em 2008, quando Putin foi impedido pela Constituição de se candidatar — reflete o grau do controle estabelecido sobre as instituições russas pelo atual presidente, incluindo a Justiça eleitoral. A começar pela mudança de regras, com o plebiscito de 2020 que abriu caminho para mais duas candidaturas de Putin, e pela exclusão de candidatos considerados “inconvenientes”.

Em 2018, o líder oposicionista Alexei Navalny, morto em circunstâncias pouco claras em uma prisão do Ártico, no mês passado, foi impedido de concorrer por causa de uma condenação em um processo por corrupção. Este ano, a jornalista Yekaterina Duntsova, que defendia o fim da guerra na Ucrânia e a libertação de todos os presos políticos, e o ativista pela paz Boris Nadejdin, foram desqualificados por supostas inconsistências apontadas pela Comissão Eleitoral Central.

O próprio clima da Rússia que chega às urnas em 2024 é diferente daquele de 2018. Além dos efeitos da guerra na Ucrânia, um tema que permeia a vida de todos mas cujas críticas em público são vetadas, os braços autoritários do Kremlin se fizeram sentir com mais força contra dissidentes.

Opositores, como o próprio Navalny, foram presos e mandados para colônias penais isoladas. Organizações de defesa dos direitos humanos, como a Memorial, vencedora do Nobel da Paz em 2022, foram fechadas sob argumento de “extremismo”. E até aqueles que saíram do país se tornaram alvos, como Leonid Volkov, aliado de Navalny, atacado com um martelo na Lituânia, na terça-feira.

Esse estado das coisas pôde ser constatado na lista de candidatos aprovados. Em 2018, além de nomes conhecidos, como Vladimir Jirinovski, baluarte nacionalista que morreu em 2022, aparecia Ksenia Sobchak, socialite, ex-apresentadora de um popular reality show, o "Dom-2", e filha do padrinho político de Putin, Anatoli Sobchak.

Com uma plataforma de ideias progressistas (que até lhe renderam convites para palestras nos EUA, como na Universidade Columbia) e defensora da liberdade de expressão, ela chegou a propor a devolução da Crimeia para a Ucrânia — ironicamente, um outdoor de sua campanha foi posicionado na frente do aeroporto de Simferopol, o principal da península, na semana da votação. No final, teve 1,68% dos votos.

Agora, além de Putin, apenas três candidatos foram autorizados: Nikolai Kharitonov, do Partido Comunista, Leonid Slutsky, “sucessor” de Jirinovski no comando do Partido Liberal Democrata da Rússia, e Vladislav Davankov, do Novo Povo e vice-presidente da Duma, a Câmara Baixa do Parlamento. Em comum, todos apoiaram, em diferentes níveis, a guerra na Ucrânia, e votam de forma consistente com o governo e com o partido Rússia Unida, principal da base do presidente — Putin não é afiliado a nenhuma sigla, e oficialmente concorre como independente.

Crise social

A Rússia que vai às urnas também é uma Rússia mais cansada das crises, da guerra e do isolamento crescente em relação ao Ocidente. A edição mais recente do Projeto Crônicas, que desde o início da guerra mapeia as mudanças de humor da população, revelou que muitos entrevistados querem, além do fim do conflito, que o Estado priorize gastos sociais e a normalização dos laços com Europa e EUA. Embora minoritários em público, alguns dizem que não votarão ou que vão anular seus votos em protesto.

— Eu planejo votar — disse Alexei, que não quis revelar seu sobrenome, à rede al-Jaezera em São Petersburgo, segunda maior cidade do país. — Estou na dúvida entre ir e destruir minha cédula, ou não votar em Putin.

Para capitalizar esse sentimento, Alexey Navalny convocou, dias antes de morrer, um protesto silencioso para o domingo, dia no qual votam a maior parte dos russos. Ao meio-dia, seus apoiadores devem ir votar ao mesmo tempo, na Rússia e no exterior, sobrecarregando os funcionários e sistemas, e dando um recado claro ao governo: estamos aqui.

“O que eles podem fazer? Eles vão fechar as seções eleitorais ao meio-dia? Organizar uma ação em apoio a Putin às 10 da manhã? Vão marcar todo mundo que apareceu ao meio-dia e colocá-los em uma lista de pessoas não confiáveis?”, escreveu o ativista em suas redes sociais antes de morrer.

Após sua morte, milhares de pessoas compareceram a um cemitério em Moscou e realizaram homenagens isoladas ao redor do país, mesmo diante do risco de prisão, o que aconteceu em muitos casos. Também existe a possibilidade de os eleitores contrários ao presidente votarem em um outro candidato, para ao menos forçar um segundo turno, uma estratégia que chegou a dar certo em votações regionais no passado.

Davankov, apesar de figurar em listas de sanções ocidentais por ter votado a favor da invasão, sugeriu ser favorável a negociações de paz, ao fim da censura e ao retorno de dissidentes no exterior, o que pode lhe render alguns votos dos descontentes — por outro lado, ativistas LGBTQIA+ lembram que ele foi coautor do projeto que baniu tratamentos de redesignação sexual e que violou uma série de direitos das pessoas transgênero. Segundo estimativas, ele deve ficar em segundo na disputa.

'Violação de soberania'

Mais uma peculiaridade da eleição é sua realização nos territórios ocupados na Ucrânia, repetindo o que aconteceu na Crimeia em 2018. Segundo moradores dessas áreas — Donetsk, Luhansk, Zaporíjia e Kherson — foi adotado um regime de votação antecipada, no qual os fiscais vão de casa em casa, acompanhados por homens armados, levando as urnas.

“Caros eleitores, nós nos preocupamos com sua segurança. Vocês não precisam ir a lugar algum para votar, nós vamos até sua cada com as cédulas e urnas”, afirmou, nas redes sociais, a comissão eleitoral instalada por Moscou em Zaporíjia.

Apesar da pressão para que os moradores adotem a cidadania russa, os fiscais estão aceitando passaportes e documentos emitidos pela Ucrânia como forma de identificação. Kiev afirma que os resultados das votações nessas áreas devem ser considerados “nulos” e “inválidos”.

"Forçar milhões de cidadãos ucranianos que vivem em territórios temporariamente ocupados ou que foram transferidos à força para a Federação Russa a participar dessas assim chamadas 'eleições' é igualmente ilegal", disse o Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia, em comunicado.

Em setembro do ano passado, as autoridades de ocupação realizaram eleições para novos conselhos regionais, em um processo chamado pelo Conselho da Europa de "violação flagrante da lei internacional'.

Próximo alvo? Separatistas na Moldávia planejam referendo para se juntarem à Rússia

Outro governo a criticar a votação foi o da Moldávia. Na terça-feira, Chisinau convocou o embaixador russo para expressar sua insatisfação com a decisão de instalar seis seções eleitorais na Transnístria, uma república separatista que nutre excelentes laços com a Rússia.

Para o premier moldávio, Dorin Recean, se tratou de uma “violação de soberania”, mas o embaixador disse que a medida apenas respeita o direito dos cidadãos de seu país ao voto — segundo as autoridades da Transnístria, há 200 mil russos vivendo no território, que recentemente debateu um novo pedido para ser anexado por Moscou, algo não apoiado publicamente pelo Kremlin.