Internacional
Brasileiro com dupla cidadania concorre a cargo de deputado na Assembleia da República em Portugal; entenda como funciona
Advogado e professor universitário, o carioca Flávio Martins preside o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP) e defende o fortalecimento das políticas públicas para portugueses no exterior
No próximo domingo, milhões de portugueses vão às urnas para eleger os deputados que irão compor a Assembleia da República pelos próximos quatro anos. O pleito, que ocorreria em 2026, acabou sendo antecipado devido à dissolução do Parlamento nas primeiras semanas do ano, após a renúncia do primeiro-ministro António Costa em novembro. Entre os mais de quatro mil candidatos está o carioca Flávio Alves Martins, cuja dupla nacionalidade costurou a vida no Rio ao pequeno país ibérico. Se eleito no dia 10, irá representar não apenas os portugueses no Brasil, mas todos aqueles espalhados fora da Europa.
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Nascido e criado no Brasil, Martins é filho de imigrantes portugueses que chegaram ao país na década de 1950. Ainda garoto, começou a frequentar um pequeno pedaço de Portugal destacado no bairro de Vila da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro: a Casa do Distrito de Viseu, que reúne imigrantes e seus descendentes.
Como o clube era próximo de sua residência, o candidato passou nele boa parte da infância e da juventude, e afirma que sua história com as comunidades portuguesas começou ali. Hoje, aos 58 anos, não lhe faltam títulos honoríficos e cargos em diferentes grupos, assembleias e casas portuguesas, tendo sido inclusive presidente por dois mandatos (2012 e 2017) na própria Casa do Viseu.
Um dos cargos mais expressivos que exerce atualmente no âmbito comunitário é a presidência do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), órgão consultivo do governo português voltado para seus cidadãos fora do país, onde está desde 2016 de maneira voluntária e não remunerada.
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No campo acadêmico, Martins é formado em Geografia e Direito, profissão que exerce atualmente. É professor titular na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e decano do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE) da instituição.
Para quem acompanhava a política portuguesa como um espectador interessado, a presidência do conselho acabou rendendo uma experiência imersiva. Martins passou a circular com bastante frequência pelo Palácio de São Bento, sede do Parlamento em Lisboa, tendo conversas com o primeiro-ministro e diferentes lideranças partidárias, além de reuniões com o presidente, secretários e outras autoridades.
— Isso me permitiu ter uma experiência e uma visão um pouco mais apurada das questões políticas em Portugal. E como eu também sou muito envolvido com essa questão comunitária, passei a me interessar, no sentido de procurar fazer algo mais. O algo mais pode ser, por exemplo, caso eu venha a ser eleito, ser uma voz mais marcante na defesa dos interesses de quem vive fora do país — explicou.
O convite para disputar um mandato no Parlamento veio na virada do ano, quando foi procurado por um dirigente do Partido Social-Democrata (PSD), de centro-direita e oposição ao atual governo. Segundo Felipe Mendes, presidente da sigla no Rio, o PSD é o partido português com o maior número de diretórios no país, com representação no Rio, onde tem quase 400 filiados, São Paulo, Santos e Paraná.
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Com a anuência, o advogado passou a concorrer como o segundo nome da lista lançada pelo Aliança Democrática (AD) — coligação formada pelo PSD, pelo CDS-Partido Popular (CDS-PP), pelo Partido Popular Monárquico (PPM) e personalidades independentes — para o círculo de Fora da Europa.
Como funciona?
A Assembleia da República é composta por 230 deputados, eleitos para um mandato de quatro anos. As cadeiras são divididas entre círculos eleitorais, que são 22 no total, sendo 18 distritos, dois para as Regiões Autônomas da Madeira e dos Açores, e dois para os eleitores portugueses no exterior. Lisboa é o maior deles, tendo 48 vagas no Parlamento. Os deputados representam todo o país e não apenas o círculo eleito.
Diferentemente do Brasil, onde as pessoas votam no número do candidato, em Portugal o voto é no partido ou na coligação, e os candidatos são organizados em ordem em uma lista. Martins, por exemplo, é o segundo da lista da AD para o círculo eleitoral de Fora da Europa, enquanto José Cesário é o primeiro.
O círculo eleitoral de Fora da Europa representa todos os cidadãos portugueses espalhados pelo mundo fora do continente europeu. Para ele, são destinadas duas vagas no Parlamento, o que na opinião do candidato é “muito pouco”. Ao menos 10,8 milhões de portugueses estão aptos para votar no domingo, e, segundo a Comissão Nacional de Eleições, cerca de 609 mil desses eleitores estão fora da Europa.
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Só no Brasil, Martins aponta, há quase 200 mil. O Rio de Janeiro — lar do candidato — e o Espírito Santo, por exemplo, concentram quase metade desse total, com cerca de 90 mil eleitores, informou o consulado-geral, cuja área de jurisdição abrange os dois estados. No círculo da Europa, que tem a mesma quantidade de cadeiras (2), há mais de 937 mil eleitores. Juntos, os círculos da Europa e de Fora da Europa somam quase 15% do total de eleitores.
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Por esse paradoxo, somado à vivência comunitária, as principais pautas do advogado são voltadas para o fortalecimento das comunidades portuguesas. Entre elas está a melhoria dos postos consulares, uma vez que no seu entendimento “quem vive fora de Portugal merece um tratamento equânime”.
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Nesse contexto, Martins defende o incentivo às carreiras daqueles que trabalham nas vias diplomáticas, envolvendo todos os funcionários, e a melhora na questão cambial dos salários, principalmente no Brasil, que tem a maior rede consular de Portugal no mundo, mas tem apresentado problemas nessa questão.
No campo social, o advogado defende a revogação da cobrança de qualquer taxa para o ensino de português no estrangeiro. Ele explica que a língua não define “quem é português ou quem não é”, mas que aprendê-la “ajuda na questão do pertencimento”:
— No Brasil, isso pode não ter um impacto muito forte, mas se você fala em comunidades que vivem por exemplo, na Argentina, onde se fala o espanhol, ou nos Estados Unidos, o inglês, essas pessoas precisam muitas vezes desse apoio. Existem comunidades portuguesas em quase 180 países. Isso é muita coisa.
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Há também a organização de um plano estratégico, voltado para atender as necessidades e potencialidades das comunidades ao redor do mundo. Para o advogado, é necessário que seja feito um levantamento do perfil dessas pessoas — “quantos são, onde estão mais concentrados, idade” — para facilitar o desenvolvimento de estratégias e políticas públicas.
— Da mesma forma que você pode ter cidadãos portugueses que tenham uma vida estável, você também pode encontrar portugueses carentes, que precisam de apoio, especialmente em países que passam por momentos de crise, como é o caso da Venezuela e da África do Sul, ou até aqui mesmo no Brasil. Cabe ao Estado [português] procurar saber onde estão, quem são essas pessoas, como elas podem ser apoiadas — explicou.
Na campanha para conseguir votos, o advogado já rodou mais de dez cidades no Brasil, “do Rio Grande do Sul a Pernambuco”, na Argentina e no Uruguai. Mas, diferentemente da explosão de santinhos, adesivos, bandeiras e outros materiais gráficos que tomam as ruas em época de eleições brasileiras, as atividades de Martins são mais comedidas, como reuniões com simpatizantes, empresários e lideranças locais. O material é eletrônico e circula via redes sociais.
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A ideia é “sensibilizar” os eleitores contra um dos maiores adversários: a abstenção. Segundo a base de dados portuguesa Pordata, foram registradas quase 49% de abstenções nas eleições legislativas de 2022. Quando analisados os eleitores no estrangeiro (os círculos da Europa e de Fora da Europa), a taxa fica em 88%. No exterior, os cidadãos podem votar por correspondência ou presencialmente. Em Portugal, o voto é em cédula.
E para ser eleito?
Em Portugal, qualquer português com mais de 18 anos pode concorrer a um cargo político. Cidadãos de nacionalidade brasileira maiores de 18 e que tenham Título de Residência Válido há pelo menos três anos no país também podem concorrer.
As cadeiras no Parlamento, por sua vez, são preenchidas através de um método de proporcionalidade, chamado de método de Hondt. Por exemplo:
Há três partidos concorrendo a duas vagas. O partido A recebeu 900, o B, 500, e o C, 300.
Organiza-se uma espécie de tabela. Como são duas vagas, analisa-se o total de votos e o total dividido por dois. Se fossem três vagas, seriam o total, o total dividido por dois, e o total dividido por três, assim por diante.
TOTAL DE VOTOS: A (900), B (500), C(300)
TOTAL DE VOTOS/2: A (450), B (250), C (150)
Procura-se os maiores números na tabela: 900 e 500
Dessa forma, como são duas vagas, uma delas seria destinada ao partido A e outra ao B.
Se o partido A fosse a AD e o B fosse outro partido, José Cesário seria eleito, por ser o primeiro candidato da lista da coligação no círculo de Fora da Europa, mas Martins não, por exemplo.
Se vencer as eleições do próximo dia 10, o advogado será o segundo brasileiro com dupla nacionalidade a ocupar uma vaga na Assembleia da República. O primeiro foi Paulo Porto Fernandes, pelo Partido Socialista (PS). Martins receberá um salário de cerca de € 3,8 mil (ou cerca de R$ 20,5 mil). Atualmente, ele mora com a esposa, as duas filhas e a mãe na Barra da Tijuca, bairro na Zona Oeste do Rio. Neste caso, também receberá, além do salário, um auxílio para deslocamento para que possa voltar ao Brasil pelo menos duas vezes por mês.
Seu cargo no CCP não apresenta incompatibilidade legal com um possível mandato, embora Martins afirme que provavelmente pediria licença da presidência para “que algum outro companheiro pudesse assumir a função no dia a dia”.
Lusodescendente ou português?
Apesar da vida comunitária ativa, da defesa das comunidades portuguesas e até mesmo da própria cidadania, o sotaque carioca e o Rio de Janeiro como casa e local de origem bastam para que muitos portugueses em Portugal tentem separá-lo em uma caixinha: a de lusodescendente.
— É como se houvesse uma categorização: "Tem o português que nasceu em Portugal e o português que nasceu fora". Ora, eu sou brasileiro e sou português! Não há conflito, pelo contrário. E se eu disser que sou português, sou como qualquer outro — defendeu.
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Em uma de suas caminhadas pela América do Sul, foi de um uruguaio — e português — que ouviu o melhor resumo da questão:
— A pessoa me disse, "em Portugal, as pessoas não entendem que nós temos dois corações", e é verdade. Eu poderia dizer até que um coração só.
O mesmo sentimento atravessa Pedro Duarte, de 32 anos, cujos avós imigraram para o Brasil na década de 1960. Vereador no Rio pelo partido Novo, o advogado entrou com o processo para tirar a cidadania no ano passado após uma visita a Portugal que acabou “aumentando a conexão”.
O contato com esse sistema que permite eleger representantes fora do país ocorreu quando ainda era adolescente, em uma de suas idas ao Mercado Municipal da Cadeg com o pai, que é dono de uma floricultura. Duarte disse ter achado “curioso” ter visto um deputado português fazendo campanha no local.
Como o processo para obtenção de cidadania ainda está em andamento, o advogado não vota este ano, o que não o impede de fazer campanha. Vestindo uma camisa da seleção portuguesa, o vereador foi às redes pedir votos para o Iniciativa Liberal (IL), cujo primeiro nome na lista de candidatos para o círculo de Fora da Europa é o de Teresa Vaz Antunes, de Dubai.
— Faço no meu tempo livre. São coisas de uma rede de liberais, de pessoas que compartilham [as mesmas] ideias. E no caso de Portugal, como eu ainda tenho essa conexão [familiar], acabo fazendo um pouco mais — explicou.
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