Internacional

'O lado da paz deve ser o mais forte possível', diz chanceler francês sobre guerra no Oriente Médio

Stéphane Séjourné, que assumiu o cargo recentemente, defendeu pontos relevantes da agenda da presidência brasileira do G20, entre eles a reforma dos organismos multilaterais

Agência O Globo - 22/02/2024
'O lado da paz deve ser o mais forte possível', diz chanceler francês sobre guerra no Oriente Médio

O Brasil é visto como um parceiro importante e estratégico pela França de Emmanuel Macron, que é representada na cúpula de chanceleres do G20 pelo ministro da Europa e dos Assuntos Exteriores do país, Stéphane Séjourné. Em entrevista aos jornais O GLOBO e Valor antes do encontro, o chanceler francês, que assumiu o cargo recentemente, defendeu pontos relevantes da agenda da presidência brasileira do G20, entre eles a reforma dos organismos multilaterais: "Já é tempo de as instituições internacionais refletirem melhor o mundo de hoje".

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Perguntado sobre as posições do Brasil nas guerras entre Rússia e Ucrânia e entre Israel e Hamas, Séjourné disse, em relação ao conflito no Oriente Médio, compartilhar a dor de Israel, mas também o drama humanitário da Faixa de Gaza, e fez um alerta: "Todos devemos ter cuidado para não sermos arrastados para uma retórica prejudicial".

O chanceler francês evitou responder se o acordo entre Mercosul e União Europeia (UE) está morto, e, numa saída diplomática, afirmou que "minha convicção pessoal é de que devemos encarar as relações entre as nossas duas regiões muito além de uma perspectiva puramente comercial".

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A seguir, os principais trechos da entrevista:

Quais são as expectativas da França em relação à presidência brasileira do G20 e qual a posição do governo Macron em relação às propostas do Brasil sobre a criação de uma aliança global contra a fome, a reforma dos organismos multilaterais e o combate à desigualdade social?

A França apoia as prioridades da presidência brasileira do G20, e vê uma forte convergência entre nossos esforços nos próximos meses. Na Cúpula Internacional para um Novo Pacto Financeiro Global, convocada pela França em junho do ano passado, o presidente Macron afirmou que nenhum país deveria ter de escolher entre reduzir a pobreza e combater as alterações climáticas.

Acredito que Brasil e França concordam nesse aspecto. Acredito, também, que uma cooperação ainda mais estreita entre os nossos dois países pode produzir resultados em ambas as frentes, antes da COP30 em Belém, que deve ser um sucesso. O Brasil também colocou a reforma da governança internacional no topo da agenda. Já é tempo de as instituições internacionais refletirem melhor o mundo de hoje, e é também tempo de todos os parceiros do G20 assumirem e exercerem efetivamente as suas responsabilidades.

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A França, como país desenvolvido, concorda com a percepção do Brasil de que os países de alta renda deveriam destinar mais recursos para combater a desigualdade e a fome no mundo? Além disso, o G7 deveria ampliar o seu compromisso com esta agenda?

Quando falamos em países de alta renda, pensamos no G7, mas também, mais amplamente, nas grandes economias do G20, especialmente na China e nos países do Golfo, que agora estão extremamente ativos, como todos sabemos, no financiamento do desenvolvimento em todos os lugares, de forma notável na África. Eles também têm uma responsabilidade. E, de fato, todos deveríamos tomar medidas para reunir mais recursos para combater a pobreza, a desigualdade, a fome e também as mudanças climáticas.

A França desempenha plenamente o seu papel nesse esforço global. Nosso país tornou-se o quarto fornecedor de ajuda aos países em desenvolvimento no mundo, colocou-se entre os 10 maiores contribuintes para a ajuda humanitária e, em 2022, ultrapassou os seus compromissos de financiamento climático, excedendo-os em mais de 1,6 bilhão de euros em um ano.

A França está também plenamente empenhada em enfrentar a crise alimentar global, que a guerra de agressão russa contra a Ucrânia agravou severamente. Além disso, a França e o Brasil são agora copresidentes da coligação de Refeições Escolares, com o objetivo de proporcionar a cada criança uma refeição saudável e nutritiva até 2030. A França gastou mais de US$ 1 bilhão no ano passado para lutar nesta direção.

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Que avaliação a França faz das posições do governo Lula sobre a guerra na Ucrânia e o conflito entre Israel e Hamas? O Brasil é visto como um interlocutor válido entre países em conflito e poderia desempenhar um papel na busca pela paz?

É importante recordar que a guerra de agressão russa contra a Ucrânia é uma violação flagrante da soberania, independência e integridade territorial de um país. Esta violação do direito internacional constitui uma ameaça direta à nossa segurança coletiva. Prejudica as próprias bases da ordem internacional, da qual todos nos beneficiamos, especialmente nações menores.

Se a Rússia vencer a guerra contra a Ucrânia, nenhum país estará jamais a salvo de ser atacado pelo seu vizinho. Essa seria uma verdade no mundo todo, inclusive na América Latina. É por isso que precisamos de uma reação firme e unificada da comunidade internacional.

O fato de a grande maioria dos países latino-americanos, especialmente o Brasil, estar comprometida com o multilateralismo, o respeito pelo direito internacional e pela soberania do Estado, como demonstraram várias votações nas Nações Unidas, é um bom sinal de que a maior parte do mundo realmente apoia a Ucrânia e quer que a agressão russa fracasse.

Quando se trata do Oriente Médio, a França e o Brasil compartilham os mesmos objetivos: um cessar-fogo, a contenção da escalada para evitar a conflagração regional e a promoção de uma solução de dois Estados. Todos devemos ter cuidado para não sermos arrastados para uma retórica prejudicial. A França compartilha a dor do povo israelense, perdemos 42 dos nossos cidadãos. Mas também compartilhamos a dor e o horror pela situação humanitária em Gaza. Ambos não são mutuamente excludentes. A conclusão é: todos devemos convergir para uma solução política e o lado da paz deve ser o mais forte possível.

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O presidente Macron afirmou recentemente que era totalmente contra o acordo entre o Mercosul e a UE. Depois de mais de 20 anos de negociações e de chegar a um entendimento em 2019, o que isto significa? Para a França, o acordo entre os dois blocos está morto?

Vários países, incluindo a França, estão preocupados com o acordo tal como ele é apresentado hoje. Esta posição não reflete de forma alguma uma oposição ao comércio internacional ou uma posição protecionista. Pelo contrário, precisamos de comércio internacional e de uma economia aberta, especialmente para apoiar o desenvolvimento e o crescimento.

No entanto, o acordo não pode contradizer os regulamentos ambientais e de saúde da UE, que os nossos produtores têm de respeitar. Deve incluir o respeito ao Acordo de Paris como cláusula essencial, e ter em conta a pegada de carbono do nosso comércio. Não haverá comércio estável e próspero se o mundo atingir +2°C até ao final do século.

Se o acordo tiver em conta estas considerações, estou certo de que, em última análise, beneficiará os cidadãos de ambos os lados do Atlântico. A minha convicção pessoal é que devemos encarar as relações entre as nossas duas regiões muito além de uma perspectiva puramente comercial. Temos muito mais em comum e só poderemos avançar numa parceria estratégica se os nossos próprios cidadãos estiverem convencidos de que esta nunca é feita contra os seus próprios interesses e valores.

Na região, dois países representam um enorme desafio para a América do Sul: Haiti e Venezuela. De que forma poderia a França desempenhar um papel construtivo para ajudar o Haiti? Existem possibilidades de trabalhar em conjunto com o Brasil? Como?

A França e o Brasil estão empenhados nestas crises, que têm impacto na estabilidade da região. A França e o Brasil têm posições semelhantes sobre a situação no Haiti. A França votou a favor da resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas que autoriza o envio ao Haiti de uma força multilateral de apoio à segurança em apoio à polícia haitiana.

Foi adotado durante a presidência brasileira do Conselho, o que envia um sinal importante. Essa força terá como missão apoiar a restauração da ordem num país cuja população está exausta por anos de violência das gangues. Uma vez que esteja implementada sob a liderança queniana esperamos que esta missão crie as condições que permitam a organização de eleições presidenciais e parlamentares.

Qual é a percepção atual da França sobre a situação na Venezuela? Como o governo francês avalia a situação na Venezuela e o papel do Brasil na crise política venezuelana?

O Brasil tem desempenhado um papel muito positivo na relação com a Venezuela. Estamos orgulhosos de que o presidente Macron tenha tomado a iniciativa de convocar [em 2023] uma importante reunião entre o vice-presidente venezuelano e os presidentes do Brasil, da Colômbia e da Argentina, que acabou por conduzir ao acordo de Barbados [em novembro do ano passado]. Este acordo entre o governo e a oposição é o caminho a percorrer para a realização de eleições presidenciais livres e transparentes no segundo semestre de 2024.

Estamos obviamente preocupados com os últimos acontecimentos, entre eles as decisões judiciais que inabilitaram vários dirigentes venezuelanos para concorrer nas eleições. O cumprimento do acordo alcançado por ambas as partes é um passo importante para acabar com a crise, como disse o presidente Macron ao presidente [Nicolás] Maduro. Penso, ainda, que não podemos subestimar o relevante papel do Brasil na contenção da escalada [entre Venezuela e Guiana] na região do Essequibo.