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Eleitores ‘nem-nem’ fortalecem candidatos nanicos e tiram mais votos de Biden do que de Trump

Insatisfação de americanos com o atual presidente e o ex Donald Trump bate recorde e pesquisas detectam crescimento de candidatos independentes para a Casa Branca; movimento pode acabar ajudando o republicano em estados decisivos, como o Michigan, que te

Agência O Globo - 19/02/2024
Eleitores ‘nem-nem’ fortalecem candidatos nanicos e tiram mais votos de Biden do que de Trump
Joe Biden

Há uma semana, nove anos após dizer adeus, Jon Stewart retornou ao “The daily show”, que, sob seu comando, se tornou um fenômeno cultural e político durante os governos de George W. Bush e Barack Obama. Posicionada “onde os americanos discutem política com profundidade, ou seja, em um diner”, nos cafundós do Michigan, uma das correspondentes do programa satírico de notícias, Desi Lydic, resumiu assim para o chefe o clima no típico restaurante da América Profunda: “tá todo mundo desanimado, vendo filme repetido, com o bode de ser comandado novamente por um homem velho branco”. Stewart, caucasiano, 61 anos, fez questão de confirmar que a comediante se referia, claro, à disputa pela presidência dos Estados Unidos.

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Além de matéria-prima para o riso inteligente, o torcer de nariz dos eleitores para os prováveis candidatos dos partidos majoritários, o presidente Joe Biden, 81 anos, e o ex Donald Trump, 77, em um repeteco do duelo de 2020, alimenta também o apelo dos nanicos. E Robert Kennedy Jr., dos Libertários, a médica Jill Stein, do Partido Verde, pela terceira vez na disputa presidencial, e o acadêmico Cornell West, independente, os que pontuam nas pesquisas, tiram mais votos de Biden. Em disputa apertada, se não têm chance real de vitória em novembro, eles podem, no entanto, alterar o resultado em seis estados-pêndulo (sem preferência clara entre democratas e republicanos), onde a eleição deverá ser decidida.

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Há quatro anos, Biden e Trump já foram os candidatos mais velhos a disputar a Casa Branca. No domingo passado, pesquisa da ABC News/Ipsos cravou que 59% dos eleitores consideram os dois “velhos demais para a presidência”. Especialista em legislação eleitoral americana, o cientista político David Schultz vê, nos números, mesmo a nove meses das eleições, “mais um sinal do crescimento do voto de protesto este ano”:

— No Michigan, Wisconsin, Pensilvânia, Nevada, Arizona e Geórgia, qualquer mudança na casa dos milhares de votos, ou alguns pontos percentuais nas pesquisas, tem hoje o poder real de decidir quem irá comandar o país nos próximos quatro anos.

Em 2016, Trump venceu a ex-senadora Hillary Clinton no Michigan por 10.704 votos e levou os 16 votos do estado no colégio eleitoral. Quatro anos depois, ele perdeu para Biden por 154.188 votos, por conta, entre outros, do apoio maciço dos árabe-americanos, universo de cerca de 310 mil eleitores no estado, que tem primárias, republicanas e democratas, na semana que vem.

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E pesquisa da Fox News divulgada na última quarta-feira mostra que este ano pode mesmo ser diferente no estado do meio-oeste. No confronto direto, democrata e republicano aparecem empatados na margem de erro (47% a 45% para Trump). Mas, quando são considerados os três nanicos, a vantagem de Trump no Michigan aumenta em 5 pontos (42% a 37%, com Kennedy, Stein e West, juntos e em ordem de preferência, com 17%). Em outros estados, pesquisas mostram o número dos nanicos, em conjunto, com mais de 20%.

— A terceira via, hoje, no Michigan, tira o dobro de votos de Biden do que Trump. Estamos há nove meses da campanha e o ‘voto útil’, que afunila o apoio aos dois majoritários, deve acontecer este ano. Mas, se os votos aos outros candidatos vierem desproporcionalmente de ex-eleitores de Biden, como as pesquisas mostram hoje, o estrago será enorme — diz o especialista democrata Chris Anderson, um dos avalistas da pesquisa da Fox.

Os três candidatos são mais jovens do que Biden e Trump. Stein tem 73 anos, e West e Kennedy Jr., 70. Há pré-candidatos ainda mais novos, de agremiações como o Partido Pela Legalização da Maconha, mas eles não pontuam em pesquisas nem devem conseguir os requisitos básicos para aparecer nas cédulas eleitorais dos estados.

Dos três, Stein é a mais dura crítica do bipartidarismo americano. Em 2016, ela recebeu 1,6 milhões de votos em todo país batendo duro na candidata “do establishment”, Hillary Clinton. Foi crucificada pelos democratas por dividir o voto à esquerda (como no Michigan), favorecendo Trump e repetindo o que Ralph Nader teria feito em 2000, ao “ficar” com 97 mil votos na Flórida. Se computados no flanco democrata, teriam dado a presidência a Al Gore e não a Bush. Pelo mesmo cálculo, Hillary teria vencido no Michigan.

Já Cornell West, que foi estrela das universidades de Yale, Princeton e Harvard, é um brilhante polemista que criticou sem piedade inclusive o governo Obama. O QG de Biden trabalha com a possibilidade de o intelectual conquistar votos de jovens e afro-americanos, dois dos grupos mais importantes para a coalizão do presidente em busca da reeleição. Mas a maior dor de cabeça para os democratas entre os candidatos que não se chamam Trump hoje é o que tem o ilustre sobrenome Kennedy.

Kennedy envergonha a família, mas preocupa Biden

RFK Jr. entrou na vida pública como uma das cabeças do bem-sucedido projeto de despoluição do Rio Hudson, no estado de Nova York. Mas se tornou motivo de vergonha na família Kennedy (é filho do ex-senador Robert e sobrinho do ex-senador Ted e deo ex-presidente JFK) pela militância antivacina. No último domingo, um anúncio de 30 segundos, no Super Bowl, com seu rosto sobreposto ao do tio mais famoso em réplica de peça da campanha de 1960 contra Richard Nixon gerou críticas dentro e fora do clã. Ainda assim, ele já arrecadou US$ 15 milhões e repetiu esta semana que irá “até o fim”.

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No início do mês, o colunista Jonathan Martin, do Politico, escreveu que o grupo No Labels, que busca, até agora sem sucesso, um candidato de centro-direita para a Casa Branca, deveria preocupar menos Biden do que o avanço dos candidatos nanicos de esquerda. E perguntou: “Em quantas pesquisas mais Kennedy precisará aparecer com dois dígitos para ser levado a sério? E quantos comícios de Biden precisarão ser interrompidos por manifestantes contra o apoio a Israel para a campanha entender que isso significa 30 mil votos a menos no Michigan e a eleição entregue de bandeja a Trump?”

No estado do meio-oeste, cresce o descontentamento, especialmente entre jovens e árabe-americanos, com o apoio da Casa Branca a Israel em meio ao desastre humanitário na Faixa de Gaza, onde morreram, desde o início do conflito, quase 30 mil pessoas, de acordo com o Ministério da Saúde controlado pelo Hamas.

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Na última quinta-feira, comandantes da campanha de Biden, entre eles a diplomata Samantha Power, que chefia a Agência para Desenvolvimento Internacional dos EUA, se reuniram com lideranças locais em Dearborn, subúrbio de Detroit, por duas horas. Ouviram que eles se sentiam 'traídos'. Entre os presentes estavam o prefeito da cidade, Abdullah Hammoud, e o deputado estadual Abraham Aiyash, eleitos pelo Partido Democrata e à frente de movimento que defende o voto nulo (com os eleitores escrevendo 'sem candidadato') nas primárias do partido no estado, no próximo dia 27. Parte da comunidade, contam, já busca candidatos que denunciam, como Stein, as operações de Israel em Gaza como desproporcionais e afirmam que a Casa Branca tem sangue nas mãos.

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Entre as demandas para um apoio a Biden similar ao de quatro anos atrás, contou Aiyash, estão o cessar-fogo de longo prazo em Gaza, restrição à ajuda militar a Israel e compromisso com a reconstrução do enclave. No mesmo dia da tensa reunião no Michigan, a Casa Branca divulgou nota afirmando que “uma operação militar de Israel em Rafah não pode ocorrer sem um plano crível que garanta a segurança dos palestinos”.

Haters ao quadrado

A rigor, Biden e Trump ainda precisam derrotar adversários internos (o deputado Dean Phillips, de um lado, e a ex-governadora Nikki Haley e o pastor Ryan Binkley, do outro), mas nenhum com possibilidade real de vitória. Hoje, é a baixa aprovação dos dois que preocupa as respectivas campanhas. A multiplicação dos eleitores nem-nem para a Casa Branca já ganhou até apelido dos magos das pesquisas: são os “haters ao quadrado”. Nem Biden, nem Trump.

—É o que mais alimenta hoje a terceira via. Estes candidatos alternativos enfrentas limitações, a maior delas o financiamento a longo prazo. Mas republicanos e democratas vivem crises existenciais profundas e entre os feridos graves dessas eleições pode estar o bipartidarismo americano— diz Schultz.