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Diante de ameaças de Putin, aflição e dúvidas dominam Conferência de Segurança de Munique

Analistas e autoridades reconhecem que Europa não fez o bastante para incrementar as próprias capacidades de defesa, e questionam se ainda há tempo para isso

Agência O Globo - 19/02/2024
Diante de ameaças de Putin, aflição e dúvidas dominam Conferência de Segurança de Munique
Vladimir Putin - Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Enquanto líderes do Ocidente se reuniram em Munique entre sexta-feira e domingo, o presidente Vladimir Putin tinha uma mensagem para eles: nada do que fizeram até agora — sanções, condenações, tentativas de contenção — mudará suas intenções de abalar a ordem mundial atual.

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A Rússia conseguiu sua primeira grande vitória na Ucrânia em quase um ano, ao tomar a cidade arrasada de Adviivka, a um elevado custo humano dos dois lados, com corpos jogados pelas estradas e o alerta de um possível novo curso na guerra, iniciada há dois anos. A suspeita morte de Alexei Navalny em uma prisão remota no Ártico deixou ainda mais claro que Putin não vai tolerar dissidências antes das eleições do mês que vem.

E a descoberta recente dos EUA de que Putin pode estar planejando posicionar uma arma nuclear no espaço, uma bomba destinada a apagar a rede global de comunicações se ele for pressionado além do limite, foi um lembrete potente de sua capacidade de atacar seus adversários com armas assimétricas, uma marca de seu poder.

Em Munique, o clima era de ansiedade e incerteza, com os líderes diante de questões inesperadas. Alertas sobre os possíveis próximos passos de Putin caminhavam ao lado das crescentes preocupações na Europa de que o continente poderá ser abandonado pelos EUA, a potência que está no centro de sua estratégia de defesa há 75 anos.

Rapidamente as discussões convergiam para o debate se o Congresso dos EUA conseguiria encontrar uma forma de financiar a Ucrânia, e por quanto tempo os ucranianos poderiam esperar. Embora o nome de Donald Trump tenha sido mencionado raramente, a possibilidade de que cumpra suas promessas de sair da Otan e deixar a Rússia “fazer o que diabo eles quiserem” com seus aliados pairou sobre os diálogos.

Mesmo assim, líderes europeus parecem ter sentido o quão devagar eles reagiram a essas novas realidades. Planos para reconstruir suas próprias forças para uma era de confronto se moveram na direção certa, afirmaram os líderes, mas eles reconhecem que isso levaria cinco anos ou mais — um tempo que podem não ter caso a Rússia vença a Ucrânia e caso Trump mine a aliança militar.

Mudança de ambiente

A severidade do clima contrastou com o visto no ano passado, quando alguns dos mesmos participantes — chefes de serviços de inteligência, oligarcas e analistas — acreditavam que a Rússia estava perto de uma derrota estratégica na Ucrânia. Havia debates sobre quantos meses seriam necessários para forçar os russos de volta às fronteiras que existiam antes da invasão de fevereiro de 2022. Agora, aquele otimismo parece ter sido prematuro ou até ilusório.

Nikolai Denkov, premier da Bulgária, argumentou que os europeus deveriam anotar algumas lições dos problemas atuais. A guerra na Ucrânia não era apenas sobre zonas cinzentas entre Europa e Rússia, afirmou, mas “se o mundo democrático que apreciamos pode ser derrotado, e isso agora é compreendido” no continente.

Outra lição é que as nações europeias perceberam que precisam combinar suas forças militares, não apenas econômicas, para construírem suas defesas, disse. Por fim, elas precisam separar as necessidades urgentes de munição da Ucrânia de seus objetivos de longo prazo.

Integrantes do governo americano tentam passar a conhecida garantia de que a liderança e o comprometimento de Washington seguem intactos. Mas eles não conseguem descrever um plano de ação para a Ucrânia com o Congresso barrando o financiamento para a compra de armas, e tampouco conseguem explicar como conseguirão uma paz sustentável depois da guerra em Gaza.

No Hotel Bayerischer Hof, o local de onde Putin alertou, em 2007, que a expansão da Otan rumo ao Leste era uma ameaça à Rússia, a viúva de Navalny fez uma aparição emocionada na sexta-feira, horas depois da morte de seu marido, recordando aos presentes que Putin “seria responsabilizado”.

Mas houve pouca discussão sobre o que o Ocidente pode fazer — praticamente todas as sanções disponíveis já foram aplicadas, e ainda não estava claro se os EUA ou a União Europeia estariam dispostos a congelar os mais de US$ 300 bilhões em bens que a Rússia deixou no exterior antes da invasão. Quando um integrante do governo americano foi questionado sobre a promessa de “consequências devastadoras” se Navalny morresse, feita em 2021 por Biden, ele não soube responder.

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Alguns dos presentes consideraram que os compromissos feitos por líderes pouco inspiradores, disse Nathalie Tocci, diretora do Instituto de Assuntos Internacionais, da Itália Steven Sokol, do Conselho Americano sobre a Alemanha, disse que “havia uma falta de urgência e falta de claridade sobre o caminho à frente, e não vi demonstrações de solidariedade europeia”.

Ritmo lento

O mais chocante nas conversas sobre a Rússia era a noção geral de que os planos de modernização militar da Europa, anunciados há duas décadas, estavam indo muito devagar para lidar com a ameaça imposta agora pela Rússia. Jens Stoltenberg, secretário-geral da Otan, se referiu a várias conclusões de serviços de inteligência de que em até cinco anos, Putin tentará testar a credibilidade da Otan ao atacar um dos países que têm fronteiras com a Rússia, mais provavelmente uma das nações bálticas.

Mas o alerta não parece ter gerado uma discussão mais urgente sobre como se preparar para esse cenário. A conferência celebrou o fato de que agora dois terços da aliança atingiram o objetivo de gastar 2% do seu PIB com Defesa. Mas poucas reconheceram que esse patamar agora está obsoleto, e mencionaram as barreiras para elevar os gastos.

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Mesmo Stoltenberg advertiu que a Europa permanece dependente dos EUA e seu guarda-chuva nuclear, e que outras nações da Otan poderiam se ver sem condições de suprir a demanda caso os EUA sigam barrando a ajuda militar para a Ucrânia.

— Precisamos fazer mais — disse Boris Pistorius, ministro da Defesa alemão.

Mas quando perguntado se os gastos militares de seu país deveriam ser de quase 4% do PIB, relutou.

— Podemos chegar a 3%, talvez 3,5% — disse. — Depende do que está acontecendo no mundo.

Quando o chefe dele, o chanceler Olaf Scholz, subiu ao palco, disse que “os europeus precisam fazer muito mais por nossa segurança, agora e no futuro”, mas não mencionou detalhes. Disse que estava “em campanha” para que outras nações europeias também elevem seus gastos militares.

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Mas a desconexão fundamental ainda estava à mostra: quando os europeus pensaram que a Rússia seria integrada às instituições europeias, pararam de planejar e gastar em planos para a hipótese de estarem errados. E quando a atitude russa mudou, reagiram mal.

— São 30 anos de subinvestimento voltando para casa — disse François Heisbourg, um analista de defesa francês.

Dmytro Kuleba, ministro das Relações Exteriores ucraniano, também foi enfático.

— Acho que nossos amigos e parceiros agiram tarde demais ao impulsionar suas indústrias de defesa — declarou. — E pagaremos com nossas vidas ao longo de 2024 para dar às suas indústrias de defesa tempo para elevar a produção.