Internacional

Putin tem 'responsabilidade direta ou indireta' pela morte de Navalny, afirma historiador

Em entrevista ao GLOBO, Angelo Segrillo afirma que reações internacionais devem ser duras, mas vê situação interna 'controlada' pelo Kremlin

Agência O Globo - 17/02/2024
Putin tem 'responsabilidade direta ou indireta' pela morte de Navalny, afirma historiador

A morte do líder opositor Alexei Navalny em uma colônia penal no Ártico, nesta sexta-feira, causou uma onda de críticas e condenações internacionais ao governo russo e ao presidente Vladimir Putin, acusado por algumas lideranças, como o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, de "tê-lo matado". Em conversa com o GLOBO, o professor de História da USP Angelo Segrillo, um dos maiores especialistas em Rússia no Brasil, apontou que o Kremlin tem responsabilidade "direta ou indireta" pela morte do opositor, mas não vê, ao menos neste momento, como Putin poderia se beneficiar do assassinato de seu mais proeminente opositor interno.

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Segrillo lembrou dos riscos assumidos pelo próprio Putin com a decisão da Justiça (alinhada ao Kremlin) de mandar Navalny para algumas das colônias penais mais duras do sistema penitenciário russo. Com a saúde ainda impactada pelo envenenamento por Novichok, em 2020, o opositor acusou as autoridades carcerárias de negligência com sua saúde, e em diversos momentos chegou a fazer greve de fome para protestar contra as condições precárias no cárcere.

Segundo o Serviço Penitenciário russo, ele "sentiu-se mal após uma caminhada, perdendo quase imediatamente a consciência", morrendo pouco depois.

— O Estado russo é responsável pela saúde de todos os seus presos, como todo Estado. Aí temos a questão de uma possível morte intencional, que é algo muito possível na Rússia, o próprio caso do Navalny, do Novichok, não engana ninguém. Isso poderia ter acontecido — opinou. — De qualquer forma, ele tem responsabilidade direta ou indireta sobre a morte, só não sei se diretamente.

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Ao questionar uma eventual ordem para matar Navalny, como foi sugerido por lideranças internacionais e políticos de oposição, Segrillo afirma não ver vantagens imediatas para Putin no assassinato de seu mais conhecido opositor. Preso desde 2021, condenado a mais de 20 anos de prisão, e com aliados igualmente presos ou inabilitados, Navalny não era uma ameaça concreta, ainda mais diante do contexto de controle quase que total do Estado pelo Kremlin.

— Não sei se seria benéfico para Putin, principalmente internamente e às vésperas de uma eleição, criar um barulho desses. Não consigo ver qual vantagem ele extrai desse episódio — pontua Segrillo. — Externamente é negativo para ele, no mundo inteiro há pessoas o chamando abertamente de assassino.

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Até o momento, as reações foram no âmbito das condenações, sem a promessa imediata de novas sanções, como geralmente acontece após assassinatos de dissidentes : o presidente dos EUA, Joe Biden, responsabilizou pessoalmente Putin pela morte do líder opositor.

— [Navalny] enfrentou corajosamente a corrupção, a violência e todas as coisas ruins que o governo Putin estava fazendo. Em resposta, Putin o envenenou, prendeu-o e o processou por crimes fabricados — disse Biden na Casa Branca. — Não sabemos exatamente o que aconteceu. Mas não há dúvida de que a morte de Navalny foi consequência de algo que Putin e seus capangas fizeram.

Ao citar a declaração de Biden desta sexta-feira, Segrillo aponta para uma outra fala do presidente americano, de junho de 2021, quando disse ao próprio Putin, na última reunião presencial entre os dois, que as consequências seriam "devastadoras" caso Navalny morresse. Na época, o dissidente estava em uma de suas greves de fome, exigindo um tratamento mais digno na cadeia.

Legado controverso

Ao comentar a história de Navalny, Segrillo destacou que ele soube como poucos usar recursos de tecnologia para atrair apoiadores e seguidores, mas que esse foi apenas um detalhe em uma estratégia mais ampla, que incluiu um discurso com forte apelo entre os russos.

— Ele também atacou muito a questão da corrupção, e sabemos como esse tema atrai as pessoas, como cola nos políticos — disse Segrillo. Uma prova disso é que um documentário feito por Navalny sobre um suposto palácio de Putin, construído à beira do Mar Negro ao custo de quase US$ 1 bilhão, tem hoje quase 160 milhões de visualizações, muitas delas na Rússia.

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Contudo, há um capítulo questionável na trajetória do líder opositor.

— Ele não era um ocidentalista, ele não era pró-Ocidente, ao contrário de muitos nomes na oposição. Navalny ele se associou, de maneira muito controversa, aos nacionalistas russos, e por incrível que pareça isso ajudou a impulsionar sua popularidade — disse Segrillo, apontando que o início do século era um momento de alta para o nacionalismo, em contraste com o ocidentalismo, associado ao caos econômico e social dos anos 1990.

Em 2007, em um vídeo no qual defendia o direito ao porte de armas, Navalny mostrou a imagem de uma pessoa com barba, supostamente um muçulmano, afirmando que queria exterminar as "moscas e baratas". Ao longo dos anos seguintes, participou de marchas nacionalistas ao lado de supremacistas brancos, o que levou à sua expulsão do partido Yabloko, o mais antigo partido liberal democrata da Rússia — sua plataforma para a prefeitura de Moscou, em 2013, tinha componentes contra a imigração.

— Naquela época, Navalny era antes de mais nada um nacionalista. Era um "nacional democrata", havia um movimento nacionalista russo do qual ele fazia parte, mas não durou muito — disse à rede al-Jazeera Alexander Verkhovsky, da Sova, um serviço de monitoramento de crimes de ódio na Rússia.

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A retórica nacionalista foi deixada de lado aos poucos, conforme lideranças mais moderadas foram se unindo a seu movimento, e enquanto seu nome ficava mais conhecido no Ocidente. Mas já em 2021, quando alguns vídeos controversos foram recuperados, a Anistia Internacional suspendeu temporariamente o status de "prisioneiro de consciência", posteriormente retomado "com ressalvas".

“Algumas das declarações prévias de Navalny são repreensíveis, e não as aprovamos de forma alguma. Como uma organização de direitos humanos, a Anistia Internacional continuará a enfrentar o racismo e todas as formas de discriminação onde quer que existam”, disse a organização em comunicado, em maio de 2021. “Isso significa que, ao confirmar o status de Navalny como prisioneiro de consciência, não endossamos seu programa político, mas estamos defendendo a urgente necessidade de seus direitos, incluindo o acesso a serviços médicos.”