Internacional

Rotulados como criminosos, bibliotecários enfrentam censura e assumem linha de frente em meio à guerra cultural nos EUA

No ano passado, mais de 150 projetos de lei em 35 estados visavam restringir o acesso a determinados livros, além de punir os funcionários

Agência O Globo - 06/02/2024
Rotulados como criminosos, bibliotecários enfrentam censura e assumem linha de frente em meio à guerra cultural nos EUA
nos Estados Unidos, Denise Neujahr - Foto: Reprodução

Durante 12 anos como bibliotecária juvenil no norte de Idaho, nos Estados Unidos, Denise Neujahr leu para e fez amizade com crianças de diversas origens. Devotas ou ateias, gays ou heterossexuais, todas eram bem-vindas até uma noite de novembro de 2021, quando cerca de duas dezenas de adolescentes que chegavam à biblioteca de Post Falls para uma reunião do "Esquadrão Arco-íris" encontraram uma confusão na entrada.

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Membros de uma igreja local agitavam placas com imagens de fogo do inferno e usavam um megafone para gritar versículos bíblicos e acusações sobre pecado e pedofilia na biblioteca. Os pais tiveram que acompanhar os adolescentes para dentro do recinto naquela noite, e a biblioteca reforçou a segurança. Mas no mês seguinte, a polícia prendeu um manifestante do lado de fora das portas que estava carregando uma faca e uma arma carregada.

Em maio, conservadores religiosos ganharam maioria no conselho da biblioteca e nomearam como presidente um membro que havia chamado o Esquadrão Arco-íris de "clube de sexo". Neujahr, que criou o grupo como um programa de artesanato, lanches e conversas para jovens LGBTQIAP+ e seus pais, disse que lhe disseram que o financiamento do grupo estava em perigo. Mas ela se recusou a dissolvê-lo.

— São realmente boas crianças — disse Neujahr. — Só me entristece muito que elas tenham que passar por todo esse ódio. Não é para isso que as bibliotecas existem.

À medida que as bibliotecas americanas se tornam novos campos de batalha ruidosos e às vezes perigosos nas guerras culturais do país, bibliotecários como Neujahr e seus aliados passaram das prateleiras para a linha de frente. Pessoas que normalmente presidem santuários silenciosos agora estão lutando contra grupos que exigem a remoção em massa de livros e buscam controlar a governança da biblioteca.

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No ano passado, mais de 150 projetos de lei em 35 estados visavam restringir o acesso a materiais de biblioteca e punir os funcionários que não os obedecessem.

— Não estamos mais vendo um pai ter uma conversa com um professor ou bibliotecário sobre um livro que seu filho está lendo — disse Deborah Caldwell-Stone, diretora do Escritório de Liberdade Intelectual da Associação de Bibliotecas Americana. — Estamos vendo grupos partidários exigirem a remoção de livros que lhes dizem ser maus livros, que nem sequer estão lendo, porque não atendem à agenda política ou moral.

As batalhas estão sendo travadas em lugares como Clinton, Tennessee, onde um aliado relutante da biblioteca, o xerife local, se manifestou contra a censura. Em Pella, Iowa, duas mulheres organizaram uma campanha bem-sucedida contra uma proposta de pôr a biblioteca da cidade sob controle municipal. E em Idaho, depois que Neujahr recebeu um prêmio por seu trabalho com o Esquadrão Arco-íris, pessoas ameaçaram sua vida e postaram informações pessoais de membros de sua família on-line.

Livros 'pornográficos'

O xerife Russell Barker tinha um problema. Como o principal policial do condado de Anderson nas montanhas do leste do Tennessee, ele lidava com narcóticos, agressões e outras investigações criminais — não com a revisão de livros infantis sobre sexo e identidade de gênero.

Mas no último ano, depois que moradores encontraram o que disseram ser mais de uma dúzia de títulos pornográficos nas quatro bibliotecas do condado, autoridades locais pediram ao xerife que determinasse se dois dos títulos visados violavam a lei de obscenidade do Tennessee. Se sim, bibliotecários, funcionários ou membros do conselho — o xerife disse às autoridades que não sabia quem eram — poderiam ser presos.

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Os dois livros dados ao xerife para revisão foram "Vamos conversar sobre isso: Um guia para adolescentes sobre sexo, relacionamentos e ser humano" de Erika Moen e Matthew Nolan, e "Gênero não-binário", uma memória em estilo de romance gráfico de 2019 de Maia Kobabe que é o livro mais banido nos Estados Unidos.

Jack Mansfield, um policial aposentado de Oak Ridge, sacudiu o dedo furiosamente para quatro bibliotecários do condado na frente da sala.

— Vocês, bibliotecários, estão fornecendo esse material; vocês também podem ser presos! — ele gritou.

Três semanas depois, os comissários do condado se reuniram para ouvir as conclusões de Barker. Ele disse que planejava seguir a política da biblioteca e fazer um pedido para que a biblioteca restrinja o acesso de crianças aos dois livros que ele revisou. Ele disse que parte do conteúdo o ofendia pessoalmente, mas nenhum dos livros violava as leis estaduais ou federais.

— Para mim, novamente, isso é sobre liberdade nos Estados Unidos — acrescentou. — Meu aviso seria, se começarmos a remover esses livros, podemos desencadear uma avalanche de todos questionando qualquer coisa com que discordem. E entramos em algumas questões de censura que estariam realmente fora dos limites do que nosso país representa.

'Efeitos corruptores'

A polêmica em Pella, Iowa, começou em 2021, quando um jovem identificado como do gênero masculino chegou ao centro aquático de sunga e com uma pequena cobertura sobre o torso, como um binder (uma espécie de top usado comumente por homens transgênero para atenuar o volume das mamas). O rumor que se espalhou foi o de que o adolescente estava nadando sem camisa perto de crianças, provocando alarde local e postagens irritadas em uma página do Facebook.

Anne Petrie, uma professora de música aposentada do Central College em Pella, e sua vizinha Anne McCullough Kelly, uma conselheira de saúde mental local, formaram um grupo do Facebook chamado "Coalizão por uma Pella inclusiva" como uma mensagem contrária aos críticos. As duas mulheres estavam em grande desvantagem nas reuniões do Conselho Municipal, incluindo uma em que Michael Shover, pastor da Igreja Cristo Redentor em Pella, disse que "os efeitos corruptores da imoralidade sexual estão agora descendo sobre nossa cidade".

O tumulto gerou um novo grupo, "Proteja a minha inocência", que no final de 2021 começou a se declarar contra cerca de 100 livros da biblioteca pública municipal que supostamente continham conteúdo pornográfico e sexualmente explícito, incluindo "Gênero não-binário".

Em 2022, o conselho da biblioteca negou o pedido do grupo de remover o livro da seção de adultos e disponibilizá-lo apenas se os clientes pedissem. O grupo reclamou ao Conselho Municipal e depois passou a coletar assinaturas para um referendo em 2023 para colocar a biblioteca sob o controle do Conselho Municipal.

Isso levou Petrie e McCullough Kelly a criar o "Vote NÃO para salvar nossa biblioteca", um comitê de ação política, com a ajuda do EveryLibrary, um grupo de defesa nacional que luta contra a censura.

Em 7 de novembro, a votação para retirar a independência da Biblioteca Pública de Pella foi de 1.954 a favor e 2.041 contra, encerrando uma batalha de dois anos por um livro.

— Eu teria gostado que a margem fosse um pouco maior? Sim — disse Petrie. — Mas fiquei realmente, realmente satisfeita que as pessoas de Pella disseram: "Não, não precisamos disso".