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Venda de cadáveres roubados para universidades expõe lacuna legal na Espanha sobre doação de corpos para a ciência

País não tem norma que regule o processo, e trâmites são realizados com base em procedimentos voluntários e códigos éticos

Agência O Globo - 05/02/2024
Venda de cadáveres roubados para universidades expõe lacuna legal na Espanha sobre doação de corpos para a ciência
Espanha

O alarme disparou na manhã de segunda-feira. A polícia enviou um comunicado à imprensa informando sobre a desarticulação de uma "rede criminosa relacionada à venda de cadáveres em Valência", na Espanha. A suposta trama falsificava documentação com o objetivo de "retirar corpos de hospitais e asilos para posteriormente vendê-los a universidades para estudo por € 1.200 cada cadáver". Dava a impressão de que havia um comércio ilegal em grande escala. Na realidade, tratava-se de dois cadáveres e a ação criminosa estava centrada em uma pequena funerária da cidade, conforme revelou a própria investigação policial de um caso que evidencia uma série de práticas ligadas à manipulação dos mortos e à necessidade de seu estudo.

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A suposta trama arquitetada principalmente por dois trabalhadores da funerária Montesinos (também conhecida como Servicios Rivato 1) começou a ser descoberta quando a Prefeitura de Albal ligou para o Hospital La Fe, perguntando pelo cadáver de um indigente francês que havia falecido em dezembro de 2022.

Os parentes distantes do falecido haviam recusado a responsabilidade pelo corpo e o procedimento de enterro beneficente havia sido iniciado, conforme explicam fontes municipais. Sem o desejo expresso em vida do falecido ou o consentimento posterior dos parentes ou conhecidos, não é possível doar um corpo para a ciência. Mas o cadáver nunca chegou a Albal. O hospital denunciou e iniciou-se a investigação que resultou na detenção inicial de quatro pessoas da referida funerária.

O cadáver havia sido vendido para as práticas dos estudantes de Ciências da Saúde da Universidade Cardenal Herrera, como confirmado pelo centro à polícia em janeiro de 2023. Ele saiu do hospital com documentação falsificada. No livro de óbitos, constava o nome de outra funerária que também prestava serviços de plantão no hospital, uma prática comum com décadas de existência em vários centros de saúde valencianos.

La Fe tinha um acordo com a Associação de Empresas de Serviços Fúnebres de Valência, que integrava mais de uma dúzia de empresas que trabalhavam em turnos, para gerenciar e registrar os mortos.

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Em maio de 2023, a Secretaria de Saúde enviou uma instrução a todos os centros para mudar o protocolo, a fim de que sejam os profissionais de saúde que transmitam todas as informações sobre funerárias, caso o falecido não tenha contratado os serviços ou um seguro, e os agentes de serviço que manipulem os corpos, como ocorre na maioria dos hospitais da Espanha, segundo fontes do setor.

O Hospital Geral de Valência, no entanto, mantém esse "serviço funerário" de um consórcio de seis funerárias até que a adjudicação seja concluída em novembro.

A polícia continuou com a investigação e encontrou "outro caso com o mesmo modus operandi". O falecido estava internado em uma ala geriátrica e três dias antes de morrer autorizou a doação de seu corpo, quando "sofria de deterioração cognitiva grave" e, portanto, não compreendia o que estava assinando.

Os agentes também descobriram que, "por meio de enganação", os supostos fraudadores conseguiram que o pessoal de saúde assinasse uma mudança de destino do corpo para enviá-lo a uma universidade que "pagava mais dinheiro pelo mesmo", conforme indicava o comunicado policial.

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Doações sem lei

Algumas horas após a divulgação das informações, as universidades valencianas com estudos em Medicina e Ciências da Saúde enfatizaram que não compram cadáveres e que os protocolos são muito estritos na aceitação de doações. Apenas se paga pelo transporte, documentação e posterior cremação do corpo, após ser utilizado para dissecção e estudo.

Fontes do setor funerário indicam que algumas universidades privadas pagam mais do que outras por esses serviços. O valor aproximado é de € 1.200, mas não está estipulado em nenhum lugar. O custo médio de um enterro ou cremação em Valência varia entre € 3 mil e € 3.500 (incluindo o caixão).

A Espanha não tem uma norma que regule o processo de doação de corpos para a ciência. São trâmites realizados com base em procedimentos voluntários e códigos éticos em toda a Espanha, nem todos cumpridos, mesmo sendo exceções, afirmam fontes universitárias.

As universidades públicas espanholas recebem mais de mil cadáveres por ano para fins científicos. Não há leis ou regras que determinem como fazê-lo, embora a Sociedade de Anatomia Espanhola, que reúne a maioria dos professores da matéria na Espanha, tenha um protocolo de boas práticas. Mas ninguém é obrigado a cumpri-lo.

— Estamos desesperados para sermos regulamentados — afirma a presidente da sociedade, Teresa Vázquez.

Sem uma lei, que existe nos demais países europeus, é mais fácil que más práticas sejam adotadas e que existam lacunas que permitam roubos, e que a venda de corpos se limite a uma acusação de falsificação de documentos.

Para doar um corpo para a ciência, é necessário seguir o procedimento com duas testemunhas e especificar a universidade à qual se deseja destiná-lo ou, no caso de falecimento fora da comunidade onde se encontra o centro, autorizar que seja transferido para outro local.

Muitas universidades públicas lançam licitações para a coleta de cadáveres, pois é um serviço repetitivo e só autorizam após verificação do relatório médico e confirmação de que atende aos requisitos para fins científicos. No caso de corpos de pessoas sem familiares conhecidos, são os assistentes sociais das residências, hospitais ou prefeituras que, em nome do falecido, realizam os trâmites, desde que a pessoa tenha expressado sua vontade de doação.

A lacuna legal é tão grande que, na Espanha, por exemplo, a importação de cadáveres é regulada, mas não limitada, e, portanto, a norma não indica quem pode fazê-lo, resultando na existência de empresas.