Internacional

Ligado ao movimento republicano, Sinn Féin chega pela primeira vez ao poder na Irlanda do Norte

Sigla tem laços históricos com a luta pela reunificação das duas Irlandas, e quebra 'tradição' do posto de primeiro-ministro sempre ser ocupado por alguém leal à Coroa britânica

Agência O Globo - 03/02/2024
Ligado ao movimento republicano, Sinn Féin chega pela primeira vez ao poder na Irlanda do Norte

Uma cena que até meados do século passado seria impensável: a Irlanda do Norte passará a ser comandada por uma política do Sinn Féin, uma sigla histórica ligada ao movimento republicano de unificação das duas Irlandas. Neste sábado, Michelle O'Neill, foi nomeada primeira-ministra pelo Parlamento de Stormont, em Belfast, que retomou suas atividades após dois anos de uma paralisia causada pelo descontentamento dos unionistas pró-britânicos com as disposições comerciais acordadas após o Brexit.

— É um dia histórico, e isso representa uma nova era — disse O'Neill, em seu primeiro discurso como primeira-ministra. — Nós marcamos aqui um momento de igualdade e progresso, uma nova oportunidade para trabalharmos e crescermos juntos.

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O Sinn Féin tem laços com a luta pela reunificação das Irlandas, e era o braço político do Exército Republicano Irlandês (IRA), grupo armado que foi um dos protagonistas de décadas de violência no país, com atentados, assassinatos e enfrentamentos com forças unionistas, que defendem a manutenção no Reino Unido. Três mil e quinhentas pessoas morreram, e o ciclo de violência só começou a ser quebrado no final dos anos 1990, culminando com a assinatura do Acordo da Sexta-Feira Santa, em 1998.

Na posse, O'Neill fez referência aos episódios sombrios da história irlandesa.

— Eu sinto muito por todas as vidas perdidas durante o conflto. Sem exceção — afirmou, reconhecendo que "as injustiças e tragédias" do passado ainda impactam a sociedade local. — O passado não pode ser mudado ou desfeito. Mas o que podemos fazer é construir um futuro melhor.

O Sinn Féin pavimentou sua chegada ao poder nas eleições de 2022, quando foi o partido mais votado. Naquele mesmo ano o Partido Democrático Unionista (DUP) se retirou do governo e do Parlamento da Irlanda do Norte em 2022 para protestar contra os controles aduaneiros impostos no âmbito do Brexit aos produtos provenientes do restante do Reino Unido. Para eles, a medida enfraquecia os laços com Londres e favorecia a reunificação das Irlandas.

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Na quarta-feira, um acordo firmado por Londres quebrou o impasse e permitiu a retomada dos trabalhos do Parlamento local. Pelo plano, o governo britânico se compromete a eliminar verificações rotineiras em bens que chegam à ilha e são destinados à Irlanda do Norte. Dentro da coalizão estarão também siglas unionistas, como o DUP, que terá três ministros e a vice-premier, Emma Little-Pengelly. Desde os anos 1990, a Irlanda do Norte tem autonomia em decisões internas de governo, enquanto Londres ainda rege temas como Política Externa, políticas macroeconômicas e de Defesa.

Além da simbólica chegada do Sinn Féin ao poder, a posse de O'Neill também é simbólica pelo fato da nova primeira-ministra, de 47 anos, ter entrado na política após o Acordo da Sexta-Feira Santa, e ter como um dos pontos centrais de seu plano de governo a convivência pacífica entre unionistas e republicanos, entre católicos e protestantes. Desde a saída britânica da União Europeia, algumas das tensões do passado ressurgiram dentro da sociedade.

— A todos vocês que são britânicos, unionistas: suas identidades nacionais, cultura e tradições são importantes para mim — disse na posse. — Nenhum de nós está pedindo ou esperando que deixemos de ser quem nós somos.

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O'Neill nasceu na República da Irlanda, é filha de militantes republicanos, e seu pai chegou a ser preso por ser membro do IRA, e um de seus primos morreu em um confronto com o Exército britânico em 1991. Apesar de não ter a mesma carga histórica de alguns de seus colegas de partido, sua chegada ao poder reacende nos meios nacionalistas a perspectiva de uma reunificação das duas Irlandas.

Embora no Sul da ilha a opinião pública seja favorável a esse desfecho — ainda mais com a chance do Sinn Féin chegar ao poder em Dublin em 2025 —, no Norte pesquisas ainda mostram resistência à ideia, mesmo depois do Brexit. Mesmo assim, Mary Lou McDonald, a líder que ajudou a mudar a imagem do Sinn Féin, prometeu que um referendo sobre o tema acontecerá ainda nesta década. (Com AFP)