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Em Gaza, crianças comem grama e bebem água suja para tentar sobreviver: 'Sofrimento intenso'

Escassez de alimento e outros insumos básicos no enclave faz com que palestinos sintam que estão 'morrendo lentamente'

Agência O Globo - 30/01/2024
Em Gaza, crianças comem grama e bebem água suja para tentar sobreviver: 'Sofrimento intenso'
Em Gaza, crianças comem grama e bebem água suja para tentar sobreviver: 'Sofrimento intenso' - Foto: Reprodução

Pouco mais de um mês depois do início da ofensiva israelense na Faixa de Gaza, que começou em 7 de outubro após o atentado coordenado pelo Hamas contra Israel, 2,2 milhões de palestinos — ou seja, toda a população do enclave — correriam o risco de morrer por desnutrição. De lá para cá, a situação não melhorou: em dezembro, a Human Rights Watch (HRW) acusou o governo israelense de submeter civis à fome como parte da guerra, e na última terça-feira Israel impôs restrições ao fornecimento de alimentos, água e combustível para o território.

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À CNN, palestinos relataram que as pessoas de Gaza passaram a comer grama e beber água suja para tentar sobreviver. Crianças choram e imploram por comida nas ruas, e o pouco de suprimento que resta no local é vendido por mais que o dobro de seu valor original. Além disso, segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), o enclave abriga 50 mil mulheres grávidas, que agora possuem maior chance de ter abortos espontâneos ou dar à luz prematuramente. Os bebês que sobrevivem no útero podem nascer abaixo do peso e morrer.

— Estamos morrendo lentamente — disse Hanadi Gamal Saed el-Jamara, de 38 anos, à CNN. — Acho que é até melhor morrer pelas bombas, pelo menos assim seremos mártires. Mas agora estamos morrendo de fome e sede — continuou, afirmando que a única coisa capaz de distrair seus sete filhos da fome é o sono. Ela contou que tenta alimentá-los ao menos uma vez ao dia, enquanto também cuida do marido, um paciente com câncer e diabetes. Todos sempre têm diarreia e estão com rostos amarelados.

Outros, segundo relatos obtidos pela CNN, caminham por horas no frio em busca de comida, correndo o risco de morrer em ataques israelenses. Mohammed Hamouda, um fisioterapeuta, lembrou o dia em que seu colega, Odeh al-Haw, foi morto ao tentar conseguir água para a sua família. Ele estava na fila de uma estação de água no campo de refugiados de Jabalya, ao norte de Gaza, quando foi atingido por bombardeios. De acordo com a ONU, a escassez é maior ao norte, onde Israel concentrou a ofensiva militar nos primeiros dias de guerra.

Desde antes da ofensiva, porém, duas em cada três pessoas no enclave dependiam de ajuda para alimentação, afirmou Arif Husain, economista do Programa Mundial de Alimentos (WFP, em inglês), à CNN. O grupo precisava fortemente da assistência da UNRWA, agência de assistência humanitária da ONU. Em alguns casos, publicou o Guardian, o serviço prestado pelo órgão substituía as incunbências estatais administradas de maneira inadequada pelo Hamas. A organização oferecia educação, cuidados médicos e farinha para padarias locais.

Na última semana, no entanto, vários países ocidentais suspenderam o financiamento à UNRWA. A medida ocorreu após Israel afirmar que 12 funcionários da instituição estiveram envolvidos no ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro. Depois do anúncio israelense, a ONU demitiu os colaboradores, e o ministro das Relações Exteriores da Jordânia instou que as nações reconsiderassem a descontinuação, destacando que a agência não deveria ser “coletivamente punida” por alegações contra uma dúzia de seus 13 mil trabalhadores.

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Em pouco mais de 100 dias de guerra, os moradores de Gaza viveram deslocamentos em massa, presenciaram a destruição de bairros e a morte de famílias inteiras. No ataque sem precedentes do Hamas ao sul de Israel, em 7 de outubro, ao menos 1,2 mil pessoas morreram e cerca de 200 foram sequestradas. Como resposta, a ofensiva israelense já matou pelo menos 26,6 mil pessoas e feriu 65,3 mil, segundo o Ministério da Saúde palestino, que é comandado pelo grupo terrorista.

Risco de morte é crescente

Famílias deslocadas em Rafah, para onde o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, em inglês) relatou que mais de 1,3 milhão de palestinos foram forçados a fugir, disseram à CNN que o estresse de não poder proteger seus filhos dos bombardeios é agravado pela incapacidade de fornecer comida suficiente a eles. Com acesso limitado à eletricidade, é impossível refrigerar produtos perecíveis, e as condições de vida tornaram-se insalubres.

— As pessoas são forçadas a cortar árvores para obter lenha para aquecimento e preparação de alimentos. A fumaça está por toda parte, e as moscas se espalham amplamente e transmitem doenças — disse à publicação Hazem Saeed al-Naizi, diretor de um orfanato na Cidade de Gaza que fugiu para o sul com 40 pessoas sob seus cuidados, sendo a maioria delas crianças e bebês com deficiências.

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Todas as 350 mil crianças menores de cinco anos em Gaza estão vulneráveis à desnutrição grave, anunciou a Unicef em dezembro. A organização já havia denunciado que o enclave passou a ser, após a guerra, o lugar “mais perigoso do mundo” para uma criança. Neste mês, a instituição também afirmou que um bebê nasce na Faixa de Gaza a cada dez minutos, embora venham ao mundo em meio a condições “inconcebíveis”. Desde outubro, quase 20 mil crianças nasceram no território, que hoje tem equipes médicas saturadas e recursos limitados.

— Virar mãe deveria ser um momento de celebração. Em Gaza, é uma nova criança nascendo no inferno — disse Tess Ingram, porta-voz da Unicef, à AFP. — Ver recém-nascidos sofrendo, enquanto algumas mães sangram, deveria tirar nosso sono. A equipe [médica] é obrigada a dar alta às mães três horas após uma cesariana. Essas condições colocam as mães em risco de abortos, natimortos, partos prematuros, mortalidade materna e trauma emocional. A humanidade não pode permitir que esta versão distorcida da normalidade persista por mais tempo.

‘Ajuda é insuficiente’

Um trabalhador humanitário afirmou ao El País que quase todas as crianças com quem conversou confessaram ter perdido algum membro da família no conflito. Ele mencionou o caso de Hasane, uma menina de 11 anos que “realmente o impactou”. Ela perdeu o pai, a mãe, o irmão e as duas irmãs, e também perdeu uma perna na guerra. Jonathan Crickx, um responsável da Unicef em Gaza, disse ao jornal que é “necessário, além da ajuda humanitária urgente, um cessar-fogo prolongado e duradouro”, e que o sofrimento por lá é “muito intenso”.

— A ajuda que está chegando em Gaza é insuficiente. Por razões de segurança, também não é possível chegar a todos que precisam. A Unicef está distribuindo alimentos altamente nutritivos para 40 mil crianças menores de cinco anos — contou Crickx, pontuando que há mais de 330 mil crianças no enclave. — Não podemos atender a todas as necessidades — lamentou ele, que também pontuou que praticamente todas as crianças do território (40% dos habitantes têm menos de 15 anos) estão em situação de vulnerabilidade máxima.