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Avalanche de dados digitais desafia Inteligência dos EUA, que têm de buscar segredos 'à vista de todos'

Vasculhar fontes abertas pode não ter o mesmo glamour do trabalho de espionagem, mas se tornou uma nova prioridade para as agências de inteligência americanas

Agência O Globo - 30/01/2024
Avalanche de dados digitais desafia Inteligência dos EUA, que têm de buscar segredos 'à vista de todos'
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A espionagem costumava ser toda sobre segredos. Cada vez mais, trata-se do que está escondido à vista de todos. Uma quantidade impressionante de dados, desde postagens no Facebook e vídeos no YouTube até sinais de localização de telefones celulares e aplicativos de carros, está na internet aberta, disponível para qualquer pessoa que olhe. As agências de inteligência dos Estados Unidos têm lutado há anos para acessar esses dados, que eles se referem como "inteligência de fontes abertas", ou Osint (na sigla em inglês). Mas isso está começando a mudar.

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Em outubro, o Gabinete do diretor de Inteligência Nacional, que supervisiona todas as agências de inteligência do país, trouxe o analista de longa data e especialista em cibersegurança Jason Barrett para ajudar na abordagem da comunidade de inteligência dos EUA em relação à Osint. Sua tarefa imediata será ajudar a desenvolver a estratégia nacional de Osint da comunidade de inteligência, que se concentrará na coordenação, aquisição de dados e desenvolvimento de ferramentas para melhorar a abordagem a esse tipo de trabalho de inteligência. O Gabinete espera implementar o plano nos próximos meses, segundo um porta-voz.

A nomeação de Barrett, que não foi reportada em público anteriormente, ocorre após mais de um ano de trabalho na estratégia liderada pela CIA (Agência Central de Inteligência), que há anos lidera os esforços do governo em Osint.

O desafio com outras formas de coleta de inteligência, como vigilância eletrônica ou inteligência humana, pode ser coletar secretamente informações suficientes em primeiro lugar. Com a Osint, o problema é filtrar ideias úteis da quantidade inimaginável de informações disponíveis digitalmente.

— Nossa maior fraqueza tem sido a vasta escala do quanto coletamos — diz Randy Nixon, diretor da divisão de Fontes Abertas da CIA.

O escritório de Nixon desenvolveu uma ferramenta semelhante ao ChatGPT que usa inteligência artificial para filtrar o crescente fluxo de dados. Agora disponível para milhares de usuários dentro do governo federal, a ferramenta direciona os analistas para as informações mais importantes e resume automaticamente o conteúdo.

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Forças-tarefa governamentais alertam desde os anos 1990 que os EUA corriam o risco de ficar para trás em Osint. Mas a comunidade de inteligência federal geralmente priorizou as informações que coleta, dificultando o progresso.

— Você constrói sua carreira com a ideia de que precisa obter informações secretamente — diz o senador Mark Warner, democrata da Virgínia, que preside a Comissão de Inteligência da Câmara. — É uma mudança de mentalidade dizer: "Ok, não, acho que podemos aprender tanto com informações de fontes abertas".

Espionagem internacional

Não desenvolver novas capacidades para usar dados abertos pode ser custoso e até perigoso, dizem formuladores de políticas e especialistas em inteligência dos EUA. A Osint é especialmente importante quando se trata de reunir informações sobre o governo chinês, cujo sistema político é altamente compartimentado e difícil de penetrar com agentes humanos.

Michael Morell, que serviu duas vezes como diretor interino da CIA durante o governo Obama, diz que identificar e disponibilizar mais informações de fontes abertas aos analistas melhoraria significativamente o desempenho da comunidade de inteligência dos EUA.

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O governo já está trabalhando na Osint. Usou registros de empresas publicamente disponíveis, documentos de aquisição e imagens de satélite para identificar alvos e sancioná-los por supostos abusos de direitos humanos em Xinjiang, um território no noroeste da China, de acordo com uma pessoa familiarizada com o assunto, que pediu para não ser identificada.

O Birô de Inteligência e Pesquisa do Departamento de Estado também usou métodos de fontes abertas para ajudar a identificar os fabricantes do balão espião chinês que percorreu os Estados Unidos no início de 2023, diz a fonte.

Por sua natureza, a Osint também é útil para grupos além das agências de inteligência tradicionais. Nos meses que antecederam a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, repórteres e analistas de centros de estudos conseguiram verificar as alegações de um acúmulo de tropas russas usando imagens de satélite comerciais, ajudando a administração Biden a convencer o público americano de que seus avisos sobre os planos russos eram críveis.

O Hamas tem confiado em imagens de televisão e postagens em redes sociais para obter ideias sobre armamento, exercícios e treinamento das Forças Armadas de Israel, segundo um estudo de maio de 2023 no periódico Intelligence and National Security.

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Os rebeldes houthis, por sua vez, usaram pesquisas no Google e dados de transporte comercial para localizar navios para atacar, segundo uma pessoa familiarizada com a situação.

Autoridades dos EUA dizem acreditar que a China está complementando sua capacidade de rastrear operações navais americanas monitorando milhares de contas de mídia social de marinheiros individuais, segundo outra pessoa. Ambas as fontes pediram para permanecer anônimas por discutir questões sensíveis.

Apesar de alguns progressos, vários formuladores de políticas de alto nível dos EUA descrevem os esforços de fontes abertas da comunidade como insuficientes.

— Daria à comunidade de inteligência um "D" quando se trata de seu desempenho em fontes abertas — diz Ellen McCarthy, que foi chefe do Birô de Inteligência e Pesquisa do Departamento de Estado de 2019 a 2021. — No Departamento de Estado, vi formuladores de políticas recorrendo cada vez mais ao setor privado para obter o que precisavam.

Parte da habilidade desse tipo de coleta de inteligência é fazê-la de tal forma que os alvos da vigilância não percebam o que está acontecendo. Se outro governo ou organização perceber como as informações que torna públicas estão contribuindo para a inteligência dos EUA, podem encontrar uma maneira de parar de compartilhar em excesso.

O próprio governo pode ser cauteloso sobre algumas das ferramentas usadas para coletar Osint. Na CIA, por exemplo, os analistas de Rússia não têm permissão para usar seus computadores desktop para acessar o aplicativo de mídia social Telegram, que é popular entre blogueiros militares russos. Os analistas também são proibidos de trazer dispositivos pessoais para o local de trabalho, forçando-os a sair das instalações da CIA quando desejam acessar o aplicativo, de acordo com pessoas familiarizadas com a situação.