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Corpo embalsamado de Lênin, morto há 100 anos, sobrevive ao custo anual de US$ 200 mil

Desde colapso da União Soviética, pesquisas indicam que russos gostariam que ex-líder fosse enterrado, mas presidente Putin descarta ideia: ‘Não devemos tocar nisso’

Agência O Globo - 21/01/2024
Corpo embalsamado de Lênin, morto há 100 anos, sobrevive ao custo anual de US$ 200 mil

Em um dos locais mais conhecidos do planeta, a Praça Vermelha, em Moscou, uma edificação por vezes passa despercebida por turistas e por quem visita a capital russa por outras razões. Mas ali, aos pés dos muros do Kremlin, está aquele que talvez seja o maior símbolo existente dos tempos da União Soviética (URSS): o corpo embalsamado de Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido como Vladimir Lênin, um dos principais responsáveis por moldar a História do século XX, cuja morte completa 100 anos neste domingo.

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Logo depois de ser declarado morto em Gorki, em 21 de janeiro de 1924, aos 53 anos, o corpo do líder da Revolução de Outubro foi preparado para um grande funeral em Moscou, que reuniu cerca de 500 mil pessoas. Naquele momento, a ideia era realizar apenas os procedimentos usuais que permitissem um velório de alguns dias antes que ele fosse sepultado.

Passaram-se 56 dias desde a morte até que fosse tomada uma decisão para preservar o corpo por mais tempo: inicialmente, a ideia era congelá-lo, o que não impediria que continuasse a sofrer decomposição, embora a um ritmo mais lento. Depois, veio uma sugestão mais radical: o embalsamamento, em um processo químico que permitiria pausar o momento da morte para sempre — ou enquanto a ciência permitir.

Órgãos retirados

Inicialmente, mais de 200 pessoas trabalharam na operação: órgãos internos foram retirados — seu cérebro foi levado para estudos adicionais para analisar suas “capacidades excepcionais”, e alguns fragmentos ainda estão no Centro de Neurologia da Academia Russa de Ciências.

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Pele, ossos e tecidos foram preservados, e a cada 18 meses o corpo passa por uma nova rotina de limpeza e embalsamamento. Até hoje, todo o processo é mantido em sigilo, e os responsáveis não responderam aos pedidos de entrevista do GLOBO.

O mausoléu foi aberto ao público em 1º de agosto de 1924, inicialmente em uma estrutura provisória, e em 1930 o local tomou as formas atuais, com as inconfundíveis paredes de granito e mármore. O nome “Lênin”, no alfabeto cirílico, encara a Praça Vermelha, hoje tomada por anúncios de marcas de todos os tipos, como um lembrete do passado comunista.

Desde então, o corpo foi movido dali apenas uma vez, em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, ou Grande Guerra Patriótica, quando a capital russa foi atingida pelos bombardeios da Alemanha nazista. Lênin ficou na cidade de Tyumen, na Sibéria, até o fim do conflito, quando o mausoléu foi reaberto.

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Por cerca de oito anos, Lênin teve companhia: Josef Stalin, que comandou a URSS desde 1924 até sua morte, em 1953. O corpo do georgiano de Gori que conduziu o governo durante a Segunda Guerra e que foi acusado por inúmeros massacres e perseguições, foi embalsamado segundo o mesmo processo, e multidões seguiram seu funeral até a Praça Vermelha.

Contudo, os tempos eram outros: o novo chefe do Partido Comunista, Nikita Kruschev, tinha como pilar a desestalinização da URSS. Em 1961, como parte desse processo, Dora Abramovna Lazurkina, uma integrante do partido, disse em uma reunião ter conversado com Lênin em sonho, e que o líder afirmou não querer a seu lado “alguém que fez tanto mal ao partido”. Apesar de a URSS ser um Estado ateu, o “desejo” foi atendido, e Stalin, sepultado no cemitério localizado ao lado dos muros do Kremlin. Três anos depois, Kruschev seria derrubado em um golpe palaciano.

sem câmeras e celulares

Quem deseja visitar o corpo de Lênin precisa passar por uma inspeção de segurança que veta a entrada de câmeras e celulares. A solenidade no ar remete aos tempos em que a bandeira vermelha, com a foice e o martelo, tremulava a poucos metros dali, e a imagem que surge quando se adentra o mausoléu faz questionar, mesmo que por alguns instantes, em que ano se está.

Na noite de 25 de dezembro de 1991, quando a URSS chegou ao fim, novos países surgiram e o sistema comunista deu lugar ao capitalismo, por décadas considerado um inimigo mortal. “Controle” era um conceito abstrato.

Novos tempos

Enquanto redes de fast-food americanas e cassinos pipocaram pela capital russa, uma questão surgiu: o que fazer com o corpo de Lênin e, principalmente, quem pagará pela manutenção? Novos líderes democráticos defenderam que o corpo fosse enterrado imediatamente, seguindo uma rotina de derrubada de antigos símbolos do regime. Mas boa parte da população e do meio político tradicional se opôs.

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— Muitas pessoas foram para a Praça Vermelha protestar contra essa blasfêmia — disse ao Moscow Times, em 2016, Yevgeny Dorovin, deputado e por muito tempo responsável pela manutenção do memorial. — Felizmente, o comandante da guarnição do Kremlin acalmou a todos, dizendo que o mausoléu estava a salvo.

Em 2016, um relatório do governo russo revelou que o custo anual para manter o corpo embalsamado era de 13 milhões de rublos, à época algo como R$ 650 mil reais ou US$ 200 mil, um valor questionado por liberais que querem pôr fim ao gasto, e mesmo por comunistas que dizem que o líder soviético não gostaria de ser eternizado como um “ídolo”.

Pesquisas dos últimos anos mostram que mais de 60% dos russos querem que ele seja enterrado, mas o presidente Vladimir Putin sinalizou, em 2019, que isso não acontecerá tão cedo — se é que será algum dia.

— Não devemos tocar nisso [enterro de Lênin] enquanto ainda houver pessoas que conectem suas vidas com isso, com as conquistas do passado, dos anos soviéticos — disse o presidente, que hoje não esconde suas muitas divergências com o pensamento leninista, inclusive sobre a Ucrânia.

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Lênin não é o único líder comunista embalsamado. Na China, Mao Tsé-tung está em um memorial em Pequim. Na Coreia do Norte, o Palácio do Sol Kumsusan guarda os corpos de Kim Il-sung e Kim Jong-il, em Pyongyang, e, no Vietnã, Ho Chi Minh está em um memorial que leva seu nome, em Hanói. Em 2013, o governo da Venezuela sinalizou que o corpo de Hugo Chávez, morto naquele mesmo ano, também seria embalsamado, mas o plano foi abandonado depois que especialistas russos apontaram que o processo seria impossível diante de uma série de “questões técnicas”.