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Conflito Armado Interno: Decreto do Equador tem status de guerra civil; 'extremo' e 'paradoxal', dizem analistas

Medida é pautada no Direito Internacional Humanitário, mas prevê operações militares para 'neutralizar' 22 grupos armados, rotulados pelo governo de terroristas

Agência O Globo - 11/01/2024
Conflito Armado Interno: Decreto do Equador tem status de guerra civil; 'extremo' e 'paradoxal', dizem analistas

“Não negociaremos com terroristas”. Foi este o argumento utilizado pelo presidente do Equador, Daniel Noboa, para declarar um Conflito Armado Não Internacional na terça-feira, apenas um dia após decretar estado de exceção em todo o território. A medida, uma resposta ao caos que se abateu sobre o país após a fuga da prisão do líder da maior facção criminosa equatoriana, prevê operações militares para “neutralizar” 22 grupos armados, “de acordo com o direito internacional humanitário e garantindo o respeito aos direitos humanos”. Para analistas ouvidos pelo GLOBO, além de extrema, a disposição é paradoxal.

— Há muita confusão jurídica com relação à nova medida de reconhecimento de um conflito armado interno no Equador — avalia Glaeldys González Calanche, especialista em América Latina e Caribe do centro de estudos Crisis Group. — Não está claro como esses grupos criminosos que foram rotulados de terroristas serão tratados, já que o Direito Humanitário Internacional (DIH) distingue apenas grupos beligerantes, que preveem uma dinâmica diferente [do tratamento dispensado a grupos terroristas].

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Para Vladimir Aras, procurador regional da República e professor de Direito Penal da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a decisão do Equador “é muito questionável”.

— Apesar de estarmos falando da ação de dezenas de facções criminosas, o atual cenário se assemelha muito mais a terrorismo do que propriamente a um conflito armado não internacional, caracterizado legalmente por uma situação de insurgência interna que impossibilita o exercício do poder soberano de um Estado — explica. — O Artigo 1º do Protocolo Nº 2 adicional às Convenções de Genebra exclui da aplicação do DIH as situações em que há apenas uma insurreição localizada, momentânea.

Estado de guerra

A declaração de estado de exceção se tornou uma constante no Equador nos últimos anos. O mecanismo, acionado repetidas vezes pelo então presidente Guillermo Lasso no enfrentamento ao narcotráfico, limita direitos como o de deslocamento e de associação. Mas é a primeira vez que um governante do país — e da América Latina — lança mão do estado de conflito interno.

Uma fonte militar a par do assunto que pediu para não ser identificada disse ao GLOBO que, “na prática, o presidente reconheceu um estado de guerra no Equador” e que, por isso, “o almirante-chefe do Comando Conjunto das Forças Armadas disse, em pronunciamento oficial, que os 22 grupos armados listados pelo governo agora são objetivos militares.” Segundo a fonte, “isso significa que, embora estejam sujeitos às regras do DIH, os militares terão mais autonomia para o uso da força no país, sem os limites jurídicos comumente observados em uma condição normal de funcionamento da nação”.

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Por condições normais de atuação, a fonte se refere a regras básicas como o impedimento do uso da força letal pelo Exército, mesmo contra um criminoso, exceto em caso de legítima defesa.

— A partir do momento em que são considerados objetivos militares, os grupos, agora chamados de “terroristas”, se tornam alvos — afirma. — Em outras palavras, eles podem ser neutralizados pelo simples fato de estarem portando armas ou integrando instalações dessas organizações. Mas ainda assim haverá regras de engajamento que indicarão em que situação se pode usar a força letal contra esses grupos armados. Mesmo numa situação de guerra, o DIH busca proteger os não combatentes.

Novo normal

No DIH, o termo “conflito armado não internacional” substitui expressões como conflito interno, guerra civil, rebelião, insurgência e insurreição, que não são definidas nas leis da guerra. Por isso, apesar “do cenário de descontrole interno” e da “fragilidade institucional” do Equador, Aras se refere ao decreto de Noboa como “extremo”.

— O quadro de aplicação material do DIH não está presente no Equador. O que evidentemente está presente é uma situação de emergência, que poderia ser resolvida com um estado de exceção, que levaria à restrição de garantias fundamentais como o direito de reunião e de privacidade das comunicações, mas não garantias fundamentais relacionados ao devido processo legal, ou seja, o direito de ser preso e ser julgado — pondera. — Não era preciso invocar uma medida tão drástica de considerar o país praticamente em situação de guerra civil. Não é como se o estado de exceção fosse liberar a execução sumária de pessoas.

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Rodrigo Reis, especialista em relações internacionais e fundador do Instituto Global Attitude, destaca que o decreto causou uma forte reação dos grupos armados no país, com ao menos 40 eventos violentos registrados em 24 horas e 12 pessoas mortas até o momento. Mas “existem diferentes parâmetros e condições que precisam ser preenchidos para caracterizar uma guerra civil”, diz.

— Não diria que há uma guerra civil em curso, embora haja atores muito bem demarcados, que são os grupos criminosos ligados às redes transnacionais de narcotráfico — afirma Calanche. — A população tem evitado sair de casa, com medo, sem saber como a situação se desenvolverá, mas muitos não veem grandes diferenças entre o que está acontecendo agora e o estado de emergência no qual o Equador vive há muito tempo.