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Brasileiras no Equador relatam que invasão ao canal de TV por criminosos mostrou gravidade da crise: 'nos sentimos ameaçados'

Mudança súbita foi sentida pelas moradores, que presenciaram correria e inquietação entre as pessoas, ansiosas para chegar em casa; ataque à emissora ocorreu na terça-feira à tarde

Agência O Globo - 11/01/2024
Brasileiras no Equador relatam que invasão ao canal de TV por criminosos mostrou gravidade da crise: 'nos sentimos ameaçados'

Maria Helena Repolês só tem elogios ao Equador. “Tranquilo”, “fácil de morar “, “agradável”, foram alguns dos adjetivos usados pela mulher de 75 anos. E todos são ditos com propriedade: apesar de ter nascido no Brasil, Repolês viveu mais da metade da sua vida no pequeno país sul-americano. Mas, na terça-feira, as imagens da invasão ao estúdio de TV por homens armados abalou esse cenário:

— Todos nos sentimos ameaçados e inseguros — lembra.

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Poucas horas antes, a idosa seguiu sua rotina normalmente. Com o país sob estado de "conflito armado interno", decretado na terça-feira pelo presidente Daniel Noboa, Repolês seguiu de carro até sua loja no centro de Quito, no bairro Mariscal, onde vende pedras preciosas e semipreciosas.

À medida que as notícias foram saindo, o clima foi mudando, “o pessoal ficou muito inquieto”, observou a idosa, com o ataque aos jornalistas provocando uma “situação de pânico”. Rapidamente, as pessoas começaram a deixar suas lojas e prédios, todos concentrados em voltar para casa o mais rápido possível.

O expediente da loja, que em dias normais seguia até às 18h, fechou por volta de 14h30 naquele dia. O trânsito ficou caótico, com táxis, ônibus e metrô suspensos. O percurso que Repolês costuma fazer em 20 minutos até sua casa, um bairro residencial no norte da cidade, demorou mais de 2h.

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Nesta quarta-feira, a loja não abriu e a comerciante pediu para que seus funcionários ficassem em casa. Apesar do toque de recolher ser apenas de 23h às 5h, Repolês decidiu não sair, porque "sair era se expor". Mesmo em seu bairro, descrito como “tranquilo”, padarias e farmácias fecharam.

Problemas vêm ‘cozinhando’

A idosa conta que a decisão de fechar o comércio veio a partir de uma experiência similar vivida no passado, que acabou culminando em saques, invasão e roubo ao centro comercial de Mariscal. Por isso, dessa vez, agiu com “prudência".

Essa memória explica o motivo pelo qual, apesar de parecer um fenômeno separado, Repolês entende o episódio dessa vez dentro de um quadro de “acúmulo” de problemas sociais, econômicos e políticos.

— Essa violência já vem cozinhando. — observa, acrescentando: — O que acontece é que os problemas vão acumulando e os governantes não conseguiram até agora solucionar a raiz do problema. E aqui também é rota de [tráfico de] droga, então complica um pouco a situação. E parece que o fundo do problema atual é por aí.

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Se há poucos anos o país era conhecido por ser um recanto de relativa paz entre os dois maiores produtores mundiais de cocaína (a Colômbia e o Peru), hoje quase um terço da droga colombiana sai da América do Sul em direção aos Estados Unidos por portos equatorianos.

Um ponto que favoreceu a nova configuração das rotas do tráfico transnacional é a dolarização da economia equatoriana, adotada em 2000, que, juntamente com os fracos controles financeiros, tornaram o país um local ideal para a lavagem de dinheiro do tráfico.

Com o clima de insegurança, o número de pessoas circulando nas ruas diminuiu, o que em parte também justifica o fechamento da loja. A rotina “foi toda transformada”, observa Repolês, privando-os de trabalhar, acesso ao lazer ou simplesmente cumprir horários:

— Tem sido complicado. Tínhamos uma vida bastante tranquila e agora estamos todos em sobressalto, sem poder cumprir com obrigações, sair para lazer, nem nada disso.

Reconstrução

As filhas da empresária e acadêmica Cibele de Souza Torres, de 46 anos, estão estudando em home office devido à medida comunicada pelo Ministério da Educação equatoriano nesta terça-feira. A mudança está prevista para continuar em vigor até sexta, dia 12.

Torres faz parte da comunidade de brasileiros no Equador — composta por cerca de 3 mil pessoas — desde 2019. Moradora de Mariscal, centro comercial onde Repolês tem a loja, a empresária conta que viu alguns militares nas ruas, o que classificou como uma situação “atípica”.

— Não foi algo que me deu medo, mas é atípico. Você não fica vendo militares a todo tempo. — explica. — As pessoas ficam tristes [com a situação], a comunidade fica afetada.

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Da sua janela, a empresária viu a movimentação intensa das pessoas na terça-feira procurando voltar para casa, assustadas com a cena transmitida ao vivo na TV. Ela reconhece o aumento da tensão em outros bairros e cidades, mas conta que, da sua parte, acabou sendo afetada muito pouco pela sensação de insegurança e medo.

Assim como Repolês, observa que Quito "sempre tem alguma turbulência" e que, no fim, "as pessoas estão acostumadas". Por isso, tenta compartilhar esse sentimento de força com as pessoas ao redor, destacando que o momento, apesar de crítico sob os olhares das autoridades, “vai passar”.

— Acho que tem solução. É uma crise que eu espero que o presidente tenha maturidade suficiente para resolver. Vai ser um susto e uma reconstrução. — declara, esperançosa e sem esconder a paixão pelo país.

O desejo é compartilhado por Repolês. Seus 50 anos no Equador ainda prevalecem sobre a crise e dão forças à idosa para pensar em dias melhores:

— Como brasileira que mora aqui há tantos anos, amo esse país e gosto de morar aqui, gostaria muito que se encontrasse uma solução viável o mais rápido possível para que possamos voltar à normalidade. Isso não é nada positivo, nem a nível pessoal, nem a nível de país.

Entenda a crise atual

Na terça-feira, Noboa declarou que o país vivia um “estado de conflito armado interno” e nomeou 22 grupos criminosos como “organizações terroristas”. O presidente ordenou que as Forças Armadas e a polícia da região se mobilizassem para “neutralizar” esses grupos. A sequência de ações ocorreu após Adolfo Macías, conhecido como Fito, líder da gangue Los Choneros, ter fugido da prisão no último domingo.

O governo de Noboa confirmou a fuga de Fito nesta segunda-feira, quando também foi declarado estado de exceção. Milhares de soldados foram mobilizados numa caçada para capturar o criminoso. Segundo o Insight Crime, os líderes do Equador já declararam estado de exceção antes, mas a ação tem se tornado mais comum nos últimos anos, à medida que as gangues do país se fortaleceram.

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Durante a campanha, Noboa prometeu inicialmente combater o crime organizado ao fortalecer a rede de segurança social e investir em educação. Mas, com o assassinato do candidato presidencial Fernando Villavicencio, em setembro de 2023, Noboa passou a falar em militarização, prometendo mais autoridade para as Forças Armadas, além de novas tecnologias e armas para a polícia.

As duras medidas contra o crime, no entanto, parecem ter alimentado a reação das gangues. A administração de Noboa reconheceu que uma de suas propostas políticas, a de construir novas prisões de segurança máxima e transferir para lá líderes de gangues presos, pode ter desencadeado esta mais recente onda de violência.