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Em um ano, quatro vezes mais africanos entram nos EUA pela fronteira com México; leia relatos

Motivo principal para viagens ainda mais longas e arriscadas dos que as para a Europa é o aumento de sentimento anti-imigração no Velho Mundo

Agência O Globo - 08/01/2024
Em um ano, quatro vezes mais africanos entram nos EUA pela fronteira com México; leia relatos
EUA

Os jovens da Guiné decidiram que era hora de deixar sua empobrecida terra natal na África Ocidental. Mas, em vez de buscarem vida nova na Europa, onde tantos emigrantes africanos se estabeleceram, eles partiram para o que se tornou uma aposta mais "segura" nos últimos tempos: os Estados Unidos.

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— Entrar nos EUA é certo em comparação com os países europeus, por isso vim [para cá] — disse Sekuba Keita, 30 anos, em San Diego, na Califórnia, após uma odisseia que o levou de avião à Turquia, Colômbia, El Salvador, Nicarágua, e depois, então, por terra, até a fronteira entre o México e os EUA.

Keita conversou com o New York Times em uma estação de carregamento de celulares no Centro de Detenção Provisória de Imigrantes de San Diego, ao lado de dezenas de outros africanos vindos da Angola, Mauritânia, Senegal e outros países, que tinham feito o mesmo cálculo — trocar a Europa pelos EUA como destino final.

Embora os africanos ainda representem uma pequena porcentagem das pessoas que atravessam a fronteira, o número tem aumentado à medida que as redes de coiotes nas Américas abrem novos mercados e capitalizam a intensificação do sentimento anti-imigração em algumas partes da Europa.

Mais de 58 mil em 2023

Historicamente, o número de imigrantes provenientes dos 54 países da África tem sido tão baixo que as autoridades dos EUA os classificavam como “outros” — categoria que cresceu exponencialmente, impulsionada justamente pelo rápido aumento de pessoas oriundas do continente, explicam as autoridades.

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De acordo com dados oficiais obtidos pelo New York Times, o número de africanos que atravessaram sem documentação necessária a fronteira sul saltou de 13.406, no ano fiscal de 2022, para 58.462 em 2023. Em 2023, a maioria deles veio da Mauritânia (15.263) ; Senegal (13.526); e Angola e Guiné, cada um com mais de 4 mil imigrantes.

As ONGs que trabalham na fronteira afirmaram que essa tendência continua, com o número absoluto e a porcentagem de imigrantes africanos aumentando à medida que os potenciais destinos na Europa diminuem.

— Há países que são cada vez menos acolhedores — disse Camille Le Coz, analista política sênior do Migration Policy Institute Europe. — Quando novas rotas se abrem, as pessoas vão migrar, pois as oportunidades econômicas no seu país seguem insuficientes.

Um número recorde de pessoas está em movimento por todo o mundo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), escapando do resultado das alterações climáticas, de estados autoritários e da instabilidade econômica.

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O crescente número de imigrantes provenientes da África exacerbou a crise na fronteira entre o México e os EUA à medida que se somam às legiões vindas das Américas Central e do Sul, bem como grupos da China, da Índia e de outras nações, rumo ao norte.

Quase 2,5 milhões de imigrantes cruzaram a fronteira entre os EUA e o México no ano fiscal de 2023, e cerca de 300 mil foram interceptados ​​pela Patrulha de Fronteira dos EUA apenas em dezembro, recorde no mês, o que levou os recursos de Washington para o setor ao limite. A maioria das pessoas solicita asilo, maneira de permanecer nos Estados Unidos até o resultado final de seus processos, que podem durar anos a fio.

Biden é pressionado pelos republicanos

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que disputa a reeleição em novembro, provavelmente contra Donald Trump, está enfrentando no momento enorme pressão dos republicanos em Washington e de alguns prefeitos e governadores da região de fronteira, para estancar o fluxo de migrantes que entram no país pelas cidades do sudoeste americano.

Em debate que já dura décadas, o Congresso não chega a um consenso sobre mudanças abrangentes no sistema federal de imigração, o que agravou os desafios de respostas ao aumento repentino de pessoas na fronteira sul. Agora, os republicanos exigiram da administração Biden que acelerasse as deportações e restringisse o asilo de imigrantes sem documentação em troca do apoio financeiro à Ucrânia e a Israel nas batalhas contra Rússia e o Hamas. As negociações sobre o tema deverão ser retomadas na próxima semana, quando os legisladores regressarem à capital após o hiato das Festas de fim de ano.

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A onda de migrantes provenientes de países africanos, que é mais uma peça desse quebra-cabeças, pode ser observada mesmo antes de chegar às Américas. Depois de um voo do Senegal ter aterrissado em Marrocos numa manhã recente, uma funcionária do aeroporto local chamou por aqueles que se dirigiam à capital da Nicarágua, Manágua. Algumas dezenas de viajantes senegaleses a seguiram.

O governo de Daniel Ortega, um velho adversário de Washington, não restringe a entrada de africanos e, ao iniciarem a sua viagem por terra ali, eles são poupados da perigosa caminhada através do Tampão de Darién, uma densa selva entre a Colômbia e o Panamá. Os migrantes africanos seguem através de Honduras, Guatemala e México até a fronteira sul dos EUA. Entre janeiro e setembro, quase 28 mil africanos passaram por Honduras, um aumento de seis vezes em relação ao período correspondente em 2022, segundo o governo hondurenho. Guiné, Senegal e Mauritânia estão entre os dez países com maior número de migrantes. Apenas algumas dezenas de pessoas de cada um desses países viajaram por Honduras em 2020.

Sentimento anti-imigrante

Embora os Estados Unidos tenham aumentado os voos de deportação, os Centros de Imigração estão lotados e famílias não podem ser detidas por longos períodos. É também extremamente difícil deportar pessoas para países da Ásia e de África, devido à longa distância e à falta de acordo com muitas nações.

Do outro lado do Atlântico, candidatos de direita com plataformas anti-imigração prevaleceram em algumas eleições nacionais no ano passado, recentemente nos Países Baixos. França, Alemanha e Espanha fecharam acordos com a Tunísia e Marrocos para interceptar migrantes que transitam nos dois países no Norte da África. E, em 20 de dezembro, a União Europeia assinou um acordo para facilitar a deportação de requerentes de asilo e limitar a migração para o bloco.

Os migrantes que se dirigem aos EUA partilham dicas e histórias de sucesso nas redes sociais, enquanto os coiotes disfarçados de guias de viagem promovem seus serviços. Amigos e parentes dos imigrantes contam que obtiveram autorização de trabalho nos EUA após apresentarem pedidos de asilo. E, embora não há garantia de que os imigrantes ganhem seus processos, normalmente demoram anos para que uma decisão seja tomada devido à morosidade da Justiça americana.

— No passado, a migração através da fronteira dos EUA era muito misteriosa para as pessoas. Agora, o maior perigo é o alcance cada vez mais global das organizações de contrabando de pessoas, auxiliadas pelas redes sociais — dzi John Modlin, chefe do setor da Patrulha Fronteiriça de Tucson.

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Modlin afirmou que tem visto um grande número de africanos atravessarem a fronteira por áreas remotas. A rota da África Ocidental via América Central surgiu há alguns anos, segundo Aly Tandian, professor especializado em Estudos de Migração na Universidade Gaston Berger, no Senegal. Mas as chegadas dos migrantes dispararam em 2023, à medida que mais pessoas começaram a voar através de Marrocos e da Turquia a caminho da Nicarágua.

— Marrocos controla o acesso marítimo, tornando mais difícil chegar à Europa. Mas vi que as pessoas tinham conseguido chegar à América — disse Ousman Camara, 27 anos, um estudante universitário da Mauritânia que se encontra atualmente nos EUA.

Camara disse que já não se sentia seguro no seu país de origem, onde grupos de direitos humanos documentaram abusos generalizados contra minorias negras, especialmente as não-árabes (cerca de 30% da população), e que planejava pedir asilo em algum país da América do Norte.

O jovem pediu emprestado cerca de US$ 8 mil a um amigo para fazer a viagem e disse que o reembolsaria assim que tivesse um trabalho estável nos Estados Unidos. Ao contrário de muitos dos imigrantes latino-americanos, muitos vindos da África contam que famílias ou amigos os ajudaram a pagar a viagem de avião para a Nicarágua.

Keita, de Guiné, disse que tinha vendido sua pequena fábrica de sabão para lavar roupas, em Kankanto, para poder pagar a viagem:

— Trabalhando aqui, poderei melhorar a minha vida e sustentar minha família.

Mohammed Aram, 33 anos, do Sudão, onde violenta guerra civil eclodiu em abril, disse que os EUA eram o melhor lugar para se começar vida nova.

— Entrar na Europa é muito difícil — disse Aram, que planeja ir para Chicago.

'Confiamos em um milagre'

Mais de uma dúzia de imigrantes entrevistados pelo New York Times contam terem sido rendidos na fronteira por agentes americanos, que os transportaram de carro até um centro de controle. Lá, eles passaram duas ou três noites para fornecer informações às autoridades. Eles foram liberados com documentos que indicavam que estavam em processo de deportação e deveriam comparecer à Justiça na data especificada na cidade onde informaram que estabeleceriam residência.

No centro de San Diego, recebem refeições e assistência para contatar amigos ou familiares em todo o país, quase sempre os que pagaram as passagens de avião. Após chegarem aos Estados Unidos, muitos expressaram otimismo quanto a um novo começo em cidades de todo o país. Alguns disseram, porém, que as publicações nas redes sociais que os animaram a tentar a vida do outro lado do mundo omitiam o perigo que poderiam encontrar nas suas viagens, especialmente na América Central e no México.

Paulo Kando, 20, e M'bome João, 22, ambos da Angola, país rico em petróleo na costa oeste africana, disseram que bandidos roubaram seus celulares e todo o seu dinheiro na fronteira entre a Guatemala e o México. Os jovens conseguiram empregos empilhando carvão em carrinhos para ganhar alguns pesos no México. Quando chegaram à Califórnia, eles não tinham nada além das roupas do corpo.

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Agora, Kando e João estão detidos em San Diego. Um amigo angolano em Portland, Oregon, prometeu recebê-los, mas não atendeu mais o telefone, e eles não têm condições de pagar a passagem para chegar lá. Os jovens não conhecem mais ninguém nos Estados Unidos, disseram. Ainda assim, não se arrependeram de ter vindo.

Kando, falando em seu português natal, disse que o objetivo não mudou.

— Estamos confiando em Deus que um milagre acontecerá — afirmou, acrescentando que "chegaremos a Portland”.