Internacional

Vizinhos em sobressalto: Guerra na Ucrânia torna instável papel de Moscou em sua antiga esfera de influência

Conflito reformulou relações em todo o mundo, mas principalmente na fronteira Europa-Ásia, fortalecendo de um lado o papel de potências regionais, e de outro minando a influência russa no Cáucaso

Agência O Globo - 07/01/2024
Vizinhos em sobressalto: Guerra na Ucrânia torna instável papel de Moscou em sua antiga esfera de influência
Ucrânia - Foto: Reprodução

A invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, reformulou as relações em todo o mundo, mas talvez em nenhum lugar mais claramente do que na fronteira entre Europa e Ásia, fortalecendo, de um lado, o papel de potências regionais e, de outro, minando a influência russa no Cáucaso. O alerta soou com o recente colapso demográfico de Nagorno-Karabakh, o enclave de etnia armênia no Azerbaijão que deveria ser protegido pelas tropas de paz russas, mas cuja dissolução enquanto república chegou a ser cogitada depois de sucumbir à última e sangrenta investida azeri, em setembro.

Contexto: Influência russa é posta à prova por conflitos envolvendo ex-repúblicas soviéticas

Bálcãs e Geórgia : Saiba mais sobre as últimas grandes guerras na Europa

Com isso, outras áreas de conflitos latentes da antiga esfera soviética, tradicionalmente na órbita de Moscou, veem com preocupação os acontecimentos: movimentos separatistas apoiados pela Rússia ocorrem na Moldávia e na Geórgia, enquanto Quirguistão e Tadjiquistão reviveram confrontos em 2022, nos quais podem ter sido cometidos crimes de guerra por ambas as partes, segundo a Human Rights Watch. Para analistas, o conflito com a Ucrânia está cobrando um preço geopolítico pesado de Moscou.

— A Rússia está claramente distraída e esgotada pela guerra na Ucrânia — disse Charles Kupchan, membro sênior do Council on Foreign Relations e professor de Assuntos Internacionais da Universidade Georgetown. — Tanto seu soft power quanto o poder coercitivo estão diminuindo.

No fim de 2020, pareceu um golpe de mestre estratégico quando o presidente russo, Vladimir Putin, intermediou o cessar-fogo entre Armênia e Azerbaijão e enviou mais de 2 mil soldados russos para manter a paz na linha de contato em Nagorno-Karabakh. Mas ele não cumpriu a promessa de pacificação e, no início de outubro, ainda culpou indiretamente os armênios pela derrota, isentando os soldados de Moscou.

— As forças de paz só tinham o direito de monitorar o cessar-fogo — disse à época.

O presidente alegou que as forças russas fizeram “tudo que estava ao seu alcance” para ajudar os civis durante a escalada do conflito, que provocou o deslocamento de mais de 100 mil armênios que habitavam o enclave. Segundo Kupchan, Moscou “não estava disposta nem era capaz de fazer mais nada” em Nagorno-Karabakh, o que indica uma mudança de estratégia, mas também perda de influência no tabuleiro geopolítico regional.

Fim da linha

Uma análise publicada pela Georgetown Security Studies Review, publicação do Centro para Estudos de Segurança da americana Universidade Georgetown, mostra que tropas e equipamentos russos estacionados em bases no Cáucaso, na Ásia Central e na Síria foram retirados de seus postos e enviados para a Ucrânia numa “tentativa desesperada” de Moscou de bloquear a contraofensiva ucraniana no Leste.

“Os acontecimentos não só expuseram as deficiências militares da Rússia, mas também minaram gravemente a imagem da Rússia aos olhos dos Estados que vivem sob uma esfera de influência antes incontestada”, afirma o documento.

Angelo Segrillo, professor de História Contemporânea da USP e especialista em Rússia, explica que a invasão da Ucrânia foi um grande susto para as antigas repúblicas soviéticas e fez com que elas se questionassem sobre a possibilidade de serem atacadas.

— Esses países são economicamente dependentes da Rússia e, por isso, precisam manter uma boa relação com Moscou, mas a guerra colocou uma pulga atrás da orelha de vários deles, fazendo ressurgir um sentimento da era soviética de que a Rússia é o centro de um império extinto que um dia pode voltar a existir — diz.

Essa percepção é mais aguda entre países menores como a Moldávia, que divide uma fronteira de 939 km com a Ucrânia e onde o Kremlin almeja controlar a região autoproclamada autônoma da Transnístria, de maioria étnica russa, onde mantém 1,5 mil soldados de “manutenção de paz” estacionados. Mas também ecoa em gigantes como o Cazaquistão, “que sempre teve uma boa relação com Moscou” e tem evitado assumir um lado no conflito, diz Segrillo.

Desde o início da guerra, surgiram diversas especulações sobre o uso da Transnístria no conflito devido à sua localização geográfica estratégica. Nesse contexto, a Moldávia apresentou sua candidatura para adesão à União Europeia (UE) e passou a dar demonstrações cada vez mais claras de solidariedade a Kiev.

A presidente moldava, Maia Sandu, acusou a Rússia de usar “sabotadores” disfarçados de civis para atiçar a população em um período de instabilidade política e preparar o terreno para um golpe que poderia arrastar o país para a guerra. Moscou, por sua vez, retaliou cortando o fornecimento de gás para o país e revogando um decreto que prevê a soberania da Moldávia para definir os rumos da região separatista. Há um mês, a UE aceitou a candidatura da Moldávia.

A Geórgia, outra ex-república soviética, também apresentou sua candidatura de adesão à UE, embora nunca tenha fechado totalmente as portas para Moscou. O país mantém relações complexas com o Kremlin. Em 2008, os dois protagonizaram uma guerra curta, mas violenta, após a chegada ao poder de um líder pró-Ocidente em Tbilisi. Como resultado, Moscou reconheceu a independência de dois territórios separatistas do norte do país, a Ossétia do Sul e a Abcásia, onde mantém presença militar até hoje e planeja instalar uma base naval.

A instabilidade geopolítica na esfera russa não se limita à fronteira entre a Europa e a Ásia. Em setembro de 2022 eclodiram confrontos na divisa entre o Quirguistão e o Tadjiquistão, que duraram seis dias e deixaram cem mortos. Na ocasião, Putin limitou-se a telefonar para os líderes dos países e pedir o fim imediato do conflito, oferecendo “assistência necessária para garantir a estabilidade na região”.

Novas potências

Após o fracasso em Nagorno-Karabakh, o líder russo decidiu cuidar mais de perto do seu quintal. Em outubro, visitou o Quirguistão para uma cúpula de ex-nações soviéticas. No mês seguinte, foi ao Cazaquistão, seu principal parceiro econômico e um país rico em petróleo, com o qual mantém vários acordos.

Para Segrillo, essas viagens foram “um movimento de contenção de danos” do que Kupchan chamou de “grande erro estratégico” pelo qual “a Rússia pagará por gerações”.

— A Rússia sempre será um ator geopolítico importante, não importa o que aconteça, porque tem muitas armas nucleares, grandes reservas de petróleo e está em uma região importante do ponto de vista geográfico — pondera Kupchan. — Mas é um ator em declínio, que não entrou de fato no século XXI e está ficando para trás no mundo digital.

Isso explica por que o russo “está bancando o bad boy”.

— Putin age como uma bola de demolição em vez de tentar construir proativamente uma alternativa. Ele sabe o que não quer, mas não tem ideia do que quer.

Assim, novas potências como China e Turquia começam a despontar no cenário regional, se não no âmbito da Defesa, ao menos do ponto de vista econômico, dizem os especialistas, que citam os corredores de transporte internacional financiados por Pequim na Ásia Central e o acordo de grãos mediado por Ancara, que permitiu por um ano o escoamento dos cereais ucranianos pelo Mar Negro durante a guerra.

— É um movimento [de descentralização] que está acontecendo em todo o Sul Global. Um país não precisa mais estar alinhado exclusivamente aos Estados Unidos ou à Rússia — conclui Kupchan.