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Sistema penal se baseia 'em medidas que reforçam a pobreza', diz ativista contra a violência policial nos EUA

Ex-detenta, Kristie Puckett se tornou uma voz em defesa de pessoas encarceradas e negras, e faz duras críticas à conduta das forças policiais e ao sistema legal americano

Agência O Globo - 03/01/2024
Sistema penal se baseia 'em medidas que reforçam a pobreza', diz ativista contra a violência policial nos EUA
EUA - Foto: Reprodução

Um relacionamento abusivo, que incluía violência física e psicológica, levou a norte-americana Kristie Puckett para o mundo das drogas no auge dos seus 20 anos. Para sustentar o vício na cocaína, a hoje ativista social passou então a cometer crimes e foi presa diversas vezes. Em 2009, já com três filhos e sem ter onde morar, decidiu quebrar esse ciclo: matriculou-se em uma faculdade comunitária e passou a usar a experiência no cárcere para ajudar outras pessoas. Kristie atualmente com 44 anos, diz que foi exatamente nessa ocasião que se tornou militante: “Meu desejo de me tornar um ativista foi realmente baseado em minha própria dor”, relembra. Os planos deram certo: a norte-americana, além da faculdade, fez mestrado e passou a atuar ainda como lobista, em defesa principalmente das pessoas encarceradas e negras, em especial das mulheres.

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Kristie foi uma das principais líderes de protestos contra a violência policial na Carolina do Norte, desencadeados pela morte de George Floyd, em 2020, e chegou a ser detida em um deles. Ela também trabalha com ex-detentos, alguns deles soltos depois de longos anos no cárcere, como Ronnie Long, que ficou 44 anos atrás das grades por um crime que não cometeu. Em 2020, ela protestou por 48 dias até que Ronnie recebesse perdão judicial. A ativista é uma das fundadoras do “Decarcerate Now!”, projeto social que luta pelos direitos das pessoas presas e integrante de um Conselho Colaborativo do estado da Carolina do Norte sobre o tema. Neste fim de ano, durante um mês, Kristie permanece na porta da residência oficial do governador da Carolina do Norte, pedindo a redução do número de presos no estado e que seja concedida clemência a alguns deles.

Como você se tornou uma ativista?

Eu diria que começou com minhas próprias experiências. Os sistemas públicos aqui neste país, especialmente legal criminal, educacional e de saúde, são racialmente díspares. Sou uma mulher negra, o que significa que a forma como sou tratada e como sou vista neste país não é igual a todas as outras, e por isso não sou vista como valiosa. Portanto, recebi um tratamento humano díspar enquanto estava encarcerada, enquanto usuária de drogas, além de vítima e sobrevivente de violência doméstica. Então meu desejo de me tornar um ativista foi realmente baseado em minha própria dor, aprendendo como transformar essa dor em paixão e transformá-la em poder.

E quando você começou, de fato, a atuar como ativista?

Saí da prisão em 2009, com três filhos e eu era uma sem-teto, viciada em drogas. Então fui para uma faculdade comunitária. Comecei a usar minha voz como sobrevivente de violência doméstica, do sistema prisional, para falar sobre o que aconteceu comigo e que eu sabia que estava acontecendo com os outros. Fiz uma especialização de dois anos em “human service”, que é como serviço social e aconselhamento, mas concentrada no vício (em drogas) e na recuperação. Porque eu sabia que a forma como operávamos não estava ajudando essas pessoas. Depois disso estudei mais dois anos, e consegui o diploma de bacharel. Em seguida, fiz um mestrado. Isso já era 2015. Obtive todos os meus diplomas e comecei a trabalhar em tempo integral. Sou ativista, defensora (de direitos), organizadora. Quando o movimento pede que eu coloque um “chapéu” diferente, eu faço. Tenho relacionamentos incríveis com pessoas encarceradas, pessoas sem-teto, e com o governador do nosso estado (Carolina do Norte). Posso ir cada um no beco com os sem-teto e posso ir à Casa Branca jantar com o presidente.

Atualmente, qual é o seu foco como militante e lobista?

Trabalho muito com pessoas que estão atualmente na prisão, mas também com quem estava preso e agora está enfrentando muitas barreiras. Porque aqui, mesmo depois de cumprir toda a sua pena, há o que chamamos de consequências colaterais. Se fizerem uma verificação de antecedentes, por exemplo, a pessoa não pode conseguir aquele apartamento porque esteve na cadeia. E assim é esse ciclo vicioso de pessoas sem moradia, sem emprego e voltando (para a prisão) porque o único lugar que isso vai levá-los é à cadeia. Tentamos atrapalhar esse ciclo. E enquanto estão na prisão, tentamos intervir para que estejam em condições humanas. Em 2021, consegui a aprovação de um projeto de lei chamado “Dignidade para mulheres grávidas encarceradas”, aqui na Carolina do Norte, porque elas eram algemadas durante o parto. Então proibimos essa prática nas prisões estaduais e agora isso está sendo discutido em outras cidades.

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Como é seu trabalho de lobista?

Você tem lobistas que trabalham em diferentes questões. A Liga Principal de Beisebol tem um lobista, o hóquei, NBA.. todo setor tem um lobista. Não faço lobby para empresas, não damos dinheiro e presentes ou nada disso, não levamos ninguém para jantar. Trabalho para uma empresa de lobby sem fins lucrativos, que geralmente trata de um assunto de uma área problemática. Então, se for apresentado um projeto de lei que é ruim para nossos constituintes, para as pessoas para quem trabalhamos, negros, pobres, o que quer que seja, nosso trabalho é tentar bloquear esse projeto de lei. E nós fazemos isso falando sobre o impacto que essa lei vai causar. É um lobby direto para a pessoa que está no poder. E há projetos de lei que apresentamos e tentamos aprová-los. Mas estou fazendo uma pausa agora porque esta sessão está muito louca na Carolina do Norte. Os republicanos têm uma supermaioria, o que significa que os democratas não têm nenhum poder. E os democratas estão desorganizados e fracos agora, então não há necessidade de desperdiçar meu tempo.

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Você faz um trabalho bem importante com pessoas presas por muito tempo injustamente nos EUA, a maioria delas, negras...

Sim. Há dois casos bem interessantes. O Ronnie Long, que é negro, foi condenado, em 1992, por um estupro que não cometeu e ficou na prisão por 44 anos. Ele tinha 20 anos quando foi preso. Permitiram que ele ficasse mais 15 anos preso, apesar de saberem que ele não havia cometido aquele crime contra uma mulher branca. E há o Sr. Norfleet, que era esquizofrênico e bipolar. Ele e a namorada começaram a discutir e ele começou um incêndio na varanda dos fundos (da casa), mas não chegou a pegar fogo. A casa não queimou, ninguém ficou ferido. Ele apenas iniciou um incêndio e foi condenado a mais de 50 anos de prisão. Ele cumpriu mais de 40 anos, mas estava sendo agredido sexualmente todos os dias na prisão. Estava sendo estuprado.

E vocês trabalham os ajudando a sair da cadeia?

Sim, os advogados trabalham nos processos e eu faço uma conscientização (do problema) não apenas para a comunidade, mas para aqueles que estão no poder. Nós realizamos comícios, por exemplo. Em 2020, sentamos do lado de fora da mansão do governador em nome de Ronnie Long por 58 dias e foi dado a ele o perdão (judicial). Então Ronnie foi libertado, mas a luta não acabou. Tínhamos que garantir que o estado pagasse (uma indenização) a ele. Fiz essa defesa diretamente com o procurador-geral aqui na Carolina do Norte. Já trabalho com eles (ex-detentos) há muitos anos. Eu vou lutar pelo meu povo porque se fosse meu pai, meu irmão ou meu tio que estivesse preso, eu iria querer eles em casa.

Você acredita que a morte de George Floyd mudou de alguma forma a atitude da polícia americana?

A polícia está chateada por ter que fazer tantas mudanças na forma como atuam. Eles querem se reservar ao direito de continuar a abusar e a brutalizar as pessoas. Eles não querem fazer mudanças na forma como operam. Eles dão desculpas e dizem que são apenas maçãs podres, mas precisamos acabar com isso. Porque me parece que não são os policiais individualmente, todo o conjunto do policiamento está errado. Há aquele velho muro de silêncio e proteção contra comportamentos horríveis, de brutalizar a maioria, principalmente pessoas negras. Agora estou fazendo uma campanha agora nesta cidade (Charlotte, Carolina do Norte) em particular. A polícia só para os motoristas negros e só espanca os negros quando os manda se movimentar. Racismo claro.

Você foi presa em um protesto contra a morte de George Floyd. Pode nos contar sobre isso?

A polícia simplesmente não gosta que você proteste, embora a 1ª Emenda da Constituição proteja o direito à liberdade de expressão e manifestação. Mas a polícia ainda usa a sua força bruta para tentar acalmar o nosso desejo de protestar contra a brutalidade policial quando a polícia mata com impunidade e imunidade. Por isso fui presa em Elizabeth City, que é uma cidade na costa da Carolina do Norte. Estivemos lá durante mais de cem dias protestando com a comunidade, todos protestos pacíficos, sem danos materiais. Zero dólares em danos causados ao longo de cem dias, mas ainda assim fomos presos duas vezes. A última vez fui presa junto com um monte de outras pessoas e rejeitaram as acusações de todos os outros, exceto a minha e a de um camarada, porque fomos avaliados como agitadores ou líderes externos. Isso porque trabalhamos para essas organizações de direitos civis. Já fomos considerados culpados no primeiro julgamento pelo juiz, então apelamos e temos um novo julgamento com júri.

Como é possível mudar sistema jurídico criminal?

O sistema jurídico penal baseia-se em medidas punitivas que reforçam a pobreza, a marginalização e ciclos de violência. Para implementar uma mudança real, devemos desmantelar e substituir este sistema por métodos transformadores e restauradores. Em primeiro lugar, precisamos mudar a nossa compreensão da justiça. Em vez de nos concentrarmos na punição, nossa abordagem deveria centrar-se na reparação e na cura. Isto significa promover práticas de justiça restaurativa que enfatizem o diálogo, a responsabilização e o envolvimento da comunidade na resolução de conflitos. Em segundo lugar, os abolicionistas defendem a retirada de fundos da polícia e a realocação de recursos para iniciativas de segurança lideradas pela comunidade. Investir na educação, nos serviços de saúde mental, na habitação e em outros programas sociais essenciais dará às comunidades as ferramentas para abordar questões sistémicas que contribuem para a criminalidade. Em terceiro lugar, acabar com o encarceramento em massa. Deveríamos também investir em alternativas ao encarceramento, tais como programas comunitários que possam apoiar indivíduos. Por último, devemos priorizar os cuidados de saúde mental no âmbito do sistema jurídico penal.

Qual é o maior desafio para essas mudanças?

A vontade política de perturbar o status quo neste país. Como país, aceitamos que pessoas sejam punidas e torturadas por crimes de pobreza. Mas posso dizer que, nos últimos anos, o progresso alcançado em torno da igualdade racial no sistema jurídico penal americano inclui, por exemplo, a implantação de políticas e programas de reforma da justiça criminal, como a Lei do Primeiro Passo nos Estados Unidos, que visa reduzir o encarceramento em massa e resolver as disparidades nas sentenças. Ainda o aumento da utilização de câmaras corporais e formação sobre preconceitos raciais para os agentes responsáveis pela aplicação da lei, a fim de melhorar a transparência e a responsabilização. E também o impulso crescente do movimento Black Lives Matter trouxe ampla atenção para a injustiça racial no sistema jurídico penal. Isso levou a várias mudanças políticas em níveis locais e estaduais.

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Qual é a solução para a inclusão dos presos na sociedade?

Para responder verdadeiramente às necessidades daqueles que regressam da prisão, os serviços devem ser abrangentes e acessíveis a todos, independentemente da raça, gênero ou nível social. Isto significa desmantelar as barreiras que impedem o acesso aos cuidados de saúde, ao emprego, à educação e à habitação. Cuidados de saúde mental de qualidade devem estar disponíveis para todos os cidadãos que saem da cadeia, sem barreiras financeiras. Da mesma forma, são necessários programas de educação e formação profissional para quebrar o ciclo de reincidência e promover a autossuficiência. Ao proporcionar-lhes as competências necessárias para garantir um emprego estável, promovemos capacitação econômica e reduzimos a probabilidade de regressarem a uma vida de crime.

Que exemplos podem servir para o Brasil?

Sejam melhores do que nós. Reconheçam como o trauma desempenha um papel nas decisões erradas e prejudiciais das pessoas. Quando abordamos os seus comportamentos (de quem infringe uma lei), devemos responsabilizá-los pelos danos, mas não devemos fazer coisas que aumentem o seu trauma ou os prejudiquem, pois isso apenas agrava um problema já profundo.