Internacional

Abrigo no México é para muitos imigrantes parada final antes de cruzarem para os EUA

A ameaça de cartéis e guerrilhas que dominam o narcotráfico, problemas econômicos e regimes políticos autoritários expulsam cada vez mais pessoas de países latino-americanos rumo ao país

Agência O Globo - 26/12/2023
Abrigo no México é para muitos imigrantes parada final antes de cruzarem para os EUA
Abrigo no México é para muitos imigrantes parada final antes de cruzarem para os EUA - Foto: Reprodução

A noite de Natal celebra o nascimento do menino Jesus para os cristãos. Segundo algumas interpretações da Bíblia, esse mesmo menino, nascido em Belém, teve que deixar a cidade em fuga para o Egito cm os pais, Maria e José, após o rei Herodes ordenar a morte de todos os bebês homens com menos de 2 anos de idade. Uma narrativa de fuga e desespero com a qual as 350 pessoas que comemoravam o Natal no abrigo Casa del Migrante — Frontera Digna, em Piedras Negras, México, poderiam facilmente se identificar.

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A ameaça de cartéis e guerrilhas que dominam o narcotráfico, problemas econômicos e regimes políticos autoritários expulsam cada vez mais pessoas de países latino-americanos rumo aos EUA. Como é o caso de Naygerely Meza, que chegara a Piedras Negras no dia anterior.

Assim como outras 7,7 milhões de pessoas — dados do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) — ela deixou seu país natal, a Venezuela, em busca de uma vida melhor para a pequena Catalina, de 2 anos. Naygerely conta que partiu com o marido e a menina em outubro e vieram “caminhando, de trem, pedindo carona”, percorrendo milhares de quilômetros até a cidade mexicana que faz fronteira com Eagle Pass, no Texas.

A véspera de Natal foi passada no abrigo Frontera Digna, que recebe milhares de imigrantes vindos de diversos países, especialmente da América Latina, e precisam de um lugar para descansar antes de aventurar-se nas águas do Rio Grande para chegar aos EUA.

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Segundo a freira Isabel, uma das responsáveis pelo abrigo, só em 2023, receberam mais de 100 mil pessoas, e desde outubro o número vem aumentando exponencialmente. Ela mostra orgulhosa a comida que receberam para o cardápio da noite de 24 de dezembro: galinha assada, purê, macarrão e suco. Uma ceia natalina que prometia ser mais do que especial, pois era não só véspera de Natal, mas também de um dia-chave para muitas pessoas ali abrigadas.

O Natal deste ano para a família de Naygerely seria dia de recolher os pertences, caminhar os poucos metros do abrigo ao rio e, numa temperatura de 8 graus, caminhar até as àguas que os separam do que esperam ser um futuro melhor para Catalina.

Toda a logística fica sob a responsabilidade dos próprios imigrantes, e alguns deles passam meses esperando por uma entrevista com o Departamento de Imigração dos EUA para pedir asilo, terminando por trabalhar como voluntários no local. É o caso do colombiano William Rodríguez, há 6 meses no abrigo.

— Comecei trabalhando na cozinha como encarregado, e depois passei a cuidar das roupas de doação distribuídas aos imigrantes quando chegam aqui —conta ele, que na noite de Natal foi o responsável pela oração coletiva antes de ceia.

Angie chegou no dia 24 e planejava cruzar a fronteira já ontem. Ela, seu filho Mateo de 3 anos, o marido Martín, a irmã e o sobrinho Matías, de 6, deixaram Carabobo, na Venezuela, há um mês e meio.

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— Viemos pela selva, em uma travessia bem longa caminhando. Outro trecho fizemos em trem — relembra, contando que o caminho foi quase todo com o filho no colo. — As crianças pequenas caminham partes do longo trajeto e logo precisam ser carregadas.

Já o sobrinho de 6 anos não teve outra alternativa que caminhar, “porque era maior e mais pesado de carregar”.

Angie diz que pensou que a parte mais difícil fora a selva, mas se deu conta de que o mais complicado tem sido desde que eles chegaram ao México —um consenso entre os imigrantes que passavam o Natal no Frontera Digna. A explicação dada por eles é a complexidade da travessia, pois “o país é muito grande e quanto mais você se aproxima da fronteira, mais complicadas ficam as coisas”, pontua Angie.

Apesar das dificuldades e da tristeza de passar o Natal longe da mãe e dos outros familiares que ficaram para trás, ela diz que ainda sobram forças para o desafio de cruzar a fronteira.

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— Quando você vê seu filho nessa situação de só às vezes poder comer, enfrentando o sol, o frio, você tira força de onde não tem e segue lutando para chegar até aqui — contou a jovem de 26 anos, com a expectativa de encarar ontem as águas do Rio Grande para tentar chegar a San Antonio, onde um primo os receberia.

Uma cena comum na noite de Natal na Casa del Migrante eram pessoas mancando ou caminhando com dificuldade devido à exaustão após milhares de quilômetros de peregrinação. Como a peruana Érica Gonzáles, que teve dificuldade para chegar à fila da comida após fazer a pé parte do percurso que faria no trem Monclova, interceptado pelas autoridades no dia 12. Ela deixou o Peru devido à situação econômica precária do país, fez o trajeto sozinha, e conta que um dos trechos mais difíceis foi a selva de Darién, que separa a Colômbia do Panamá.

— Demorei 3 dias, são montanhas tão grandes, das quais é preciso descer sentada. No caminho, você passa fome, frio, medo, especialmente da guerrilha. Cada pessoa tem sua própria experiência ao vir aos EUA dependendo dos países pelos quais passa, mas, sim, é duro, não é fácil atravessar a selva — relata, acrescentando não recomendar a ninguém migrar desta maneira.

Com o abrigo sem leitos suficientes para todos, a única solução é acomodar-se em barracas, quando se tem sorte, ou contentar-se com um lugar no chão, ao relento.

— É muito doloroso, porque agora não está fazendo frio, mas quando faz frio, é muito frio! — diz a freira Isabel.

Ela diz que os recursos do abrigo são suficientes para fornecer um colchonete e um cobertor a quem precisa passar a noite. A principal queixa dos imigrantes, no entanto, é a escassez de comida. Com poucos recursos e uma alta demanda, o abrigo consegue oferecer só duas refeições por dia.

— É muito triste! Passar (o Natal) longe da família, com pessoas desconhecidas, mas pelo menos aqui recebemos um apoio para dormir, ou para a comida, o que é muito bom. Graças a Deus! — diz a colombiana Maria Cristina Gúzman, desfrutando sozinha de sua ceia natalina em frente ao conjunto de barracas que se amontoam em uma das esquinas do pátio do abrigo.

Ela é uma das dezenas de pessoas que planejaram atravessar o rio neste dia de Natal.

— Vamos ver se o menino Jesus nos concede um milagre — diz a mulher que veio acompanhada do filho e do neto.

Um milagre que se vê materializado não muito longe dali, no aeroporto de San Antonio, onde Darlen Paz e suas duas filhas Bresling, de 16 anos, e Stary, de 8, vindas da Nicarágua, compartilham um prato de macarrão, única ceia de Natal que seus contados dólares conseguiram comprar. Na mesa onde descansam seus poucos pertences, já que a maior parte foi tragada pelo rio na travessia, descansa também um envelope amarelo, já com o papel desgastado. Dentro estão os documentos que elas receberam da Imigração. Dentro dele está também a esperança de “fazer a América” que compartilham todos aqueles que chegam até aqui.

*Especial para O GLOBO