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Voz dos invisíveis: ativista brasileira que viveu 30 anos sem nacionalidade inspira leis sobre apátridas

Segundo estimativas da ONU, cerca de 10 milhões de pessoas não têm a nacionalidade reconhecida por nenhum Estado ao redor do mundo, equivalente à toda população de Portugal

Agência O Globo - 25/12/2023
Voz dos invisíveis: ativista brasileira que viveu 30 anos sem nacionalidade inspira leis sobre apátridas

Sem lenço e sem documento, a ativista Maha Mamo caminhou a maior parte da vida sonhando com o dia em que poderia fazer coisas simples, como trabalhar, casar ou sair do país. Natural de Beirute, no Líbano, ela viveu sem nacionalidade por 30 anos até inspirar uma mudança histórica na legislação brasileira, que assegurou seu direito de existir em 2018. Hoje, Maha é porta-voz das dores invisíveis de 4 milhões de apátridas espalhados ao redor do mundo — número que pode chegar a 10 milhões considerando as subnotificações, segundo estimativas da ONU, uma população equiparável a de Portugal.

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Filha de sírios — o pai cristão e a mãe muçulmana —, seus pais fugiram para o Líbano para ficar juntos, já que o casamento entre pessoas de religiões diferentes não é permitido até hoje no país. Lá, eles tiveram três filhos: Maha, sua irmã Souad e seu irmão Eddy.

Embora tenham nascido em território libanês, as crianças não puderam ser registradas, uma vez que o Líbano apenas permite que o pai transmita a sua nacionalidade. Ou seja, como o pai de Maha era sírio, ela não poderia ser libanesa mesmo tendo nascido no país. E também não poderia ser síria, já que os filhos fruto de casamentos interreligiosos não são reconhecidos pelo Estado.

— Não existe aquele conceito de pai solo e mãe solo, por isso que a gente nasceu como apátridas — explica ao GLOBO. — Na minha infância, eu nem sabia que isso existia, então eu vivia a condição sem saber realmente a definição.

De acordo com Davide Torzilli, representante do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) no Brasil, lacunas nas legislações locais são um dos principais motivos para a apatridia. Muitas vezes, o fenômeno ocorre com o surgimento de novos estados, mudanças de fronteiras, privação da nacionalidade ou quando as pessoas não conseguem comprovar seu vínculo com o país. No entanto, também pode estar relacionado à discriminação "com base em raça, etnia, religião, idioma ou gênero", afirma Torzilli, citando como exemplo a proibição às mulheres de passarem a sua nacionalidade aos filhos em 25 países, como é o caso do Líbano.

— Consequentemente, as crianças podem se tornar apátridas quando os pais são apátridas, desconhecidos, desaparecidos ou falecidos — esclarece o porta-voz do Acnur. — Mais de 75% das populações apátridas conhecidas no mundo pertencem a grupos minoritários.

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Maha demorou para descobrir o que significava ser uma pessoa sem pátria, mas não para sentir na pele as consequências disso. Aos 3 anos, foi barrada em diversas escolas até conseguir se matricular em uma graças à empatia da direção de um colégio armênio — cuja comunidade se tornou muito presente no Líbano desde o genocídio sofrido pela população em 1915.

Com 15, foi impedida de participar de um campeonato com o seu time de basquete, mesmo sendo capitã. Os questionamentos começaram aos 16, quando viu seu grupo de escoteiras viajar para a Jordânia enquanto ficava para trás, sem entender direito o porquê. O assunto, no entanto, era tabu dentro de casa, o que tornou sua jornada de autodescobrimento ainda mais solitária, justamente no momento em que tentava ingressar no ensino superior.

— A primeira faculdade onde eu fui, pegaram as minhas notas e simplesmente jogaram na minha cara — relata, afirmando que teve que bater na porta de várias universidades até ser aceita por uma, onde trabalhou lá dentro para arcar com os custos.

Por mais de 10 anos, Maha mandou dezenas cartas e e-mails para embaixadas no Líbano pedindo ajuda — uma vez que não poderia sequer entrar no prédio de um órgão governamental sem apresentar uma identificação. Nesse meio tempo, ela conta que a condição de apátrida já pôs até a sua vida em risco.

— Eu estava no casamento de uma amiga e tive pela primeira vez uma crise alérgica. Várias urticárias surgiram no meu corpo e minhas veias começaram a dilatar. Me levaram correndo ao hospital, já desmaiada, mas inicialmente eu não fui atendida porque não tinha documento — relembra, afirmando que precisaram usar o documento da sua amiga e subornar a equipe médica para salvar sua vida.

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Com o passar dos anos, a situação foi se tornando cada vez mais insustentável, conta a ativista. Desde pequenas decisões, como comprar um chip de celular, abrir uma conta no banco ou entrar em uma boate; até maiores, como desistir de um casamento e precisar fugir de blitzes policiais.

— Havia muitos bombardeios no Líbano, então cada vez que uma bomba estourava em algum lugar, o nosso medo era ainda maior depois, porque tinham blitzes de polícia em todos os lugares. Se você é parada e não apresenta um documento, eles te consideram terrorista — afirma. — Mesmo sem a gente fazer nada errado, simplesmente a nossa existência era errada.

A mudança começou em 2014, quando Maha Mamo recebeu a resposta que transformou sua vida. Por causa da guerra na Síria, a embaixada brasileira — que estava oferecendo visto para refugiados fugirem do conflito — sugeriu que a ativista e seus irmãos viessem para o Brasil utilizando o mesmo documento dos migrantes do país. Na esperança de enfim obter uma nacionalidade, eles vieram.

Mas ao chegar aqui, Maha descobriu que o caminho não seria tão fácil. Em meio aos desafios com o idioma e para se inserir no mercado de trabalho, a ativista deparou-se com mais burocracias: os documentos que permitiam que ela residisse no país por cinco anos como refugiada não significavam que ela poderia se tornar cidadã brasileira, já que o Brasil sequer tinha uma legislação sobre apatridia. O caso da família Mamo era tão excepcional que apenas uma mudança na lei poderia garantir tal direito — o que poderia levar anos ou até décadas.

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Maha entrou em contato, então, com o escritório do Acnur no Brasil, e sua história começou a se tornar mais conhecida, sendo convidada para dar palestras dentro e fora do país. Tudo mudou com a morte brutal do seu irmão Eddy, na época com 26 anos, durante uma tentativa de assalto em Belo Horizonte, onde moravam. Em razão do imbróglio envolvendo os documentos da família, ele foi enterrado sem nunca ter pertencido oficialmente a uma nação.

— Com a força da perda dele, eu só consegui pensar uma coisa: eu não quero morrer como apátrida — afirma.

A partir desse momento, Maha decidiu que iria se dedicar totalmente a contar sua história, chamando a atenção da imprensa internacional e gerando convites para palestrar em diversas empresas e até na ONU. Começaram também as viagens a Brasília, onde compartilhou seu caso com o governo brasileiro.

Com a sua contribuição, a Lei de Imigração n°13.445, sancionada em maio de 2017, incluiu um capítulo inteiro sobre apatridia. A legislação é considerada uma das mais avançadas sobre a questão no mundo e garantiu, em outubro do ano seguinte, que Maha Mamo se tornasse a primeira apátrida a obter nacionalidade brasileira. Hoje, aos 35 anos, sua história já inspirou a formulação de políticas públicas em mais de 20 países.