Internacional

Na França, crianças terão aulas de empatia para combater o bullying e aprender a lidar com emoções

Governo tenta dar uma resposta à onda de casos de suicídio de adolescentes vítimas de bullying. Só neste ano, três jovens morreram

Agência O Globo - 24/12/2023
Na França, crianças terão aulas de empatia para combater o bullying e aprender a lidar com emoções
Foto: Internet

Gentileza gera gentileza, já ensinava José Datrino, o Profeta Gentileza, em suas famosas inscrições nas pilastras do Viaduto do Gasômetro, na zona central do Rio de Janeiro. A milhares de quilômetros de distância, na França, alunos vão aprender na escola o valor da empatia. Com o objetivo de prevenir os casos de bullying, as crianças terão aulas para saber lidar com as suas emoções.

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O governo tenta dar uma resposta à onda de casos de suicídio de adolescentes vítimas de bullying. Só neste ano, três jovens morreram. Em setembro, alguns dias depois do início das aulas, Nicolas, 15 anos, se enforcou por não aguentar a angústia de voltar a sofrer agressões. O caso causou comoção, agravada pelo fato de que os pais do jovem não receberam apoio da escola. Ao contrário, foram ameaçados pela reitoria após oficializarem as denúncias dos maus-tratos contra o filho.

Adaptação local

A França ainda desenha um programa adaptado à sua realidade que deve começar a ser aplicado em creches e escolas de todo o país a partir de 2024. O método dinamarquês Fri For Mobberi (em tradução livre, Livres do Bullying), foi citado pelo ministro da Educação, Gabriel Attal, como uma inspiração. Ele prevê dinâmicas de grupo sobre tolerância, gentileza, coragem e respeito e já é adotado, em caráter experimental, em escolas parisienses desde o ano passado.

Os professores usam material adaptado para cada faixa etária com imagens de situações do cotidiano. O projeto original propõe ainda massagem. As crianças são incentivadas a falar sobre o que sentem e a perceber todos os personagens envolvidos.

Segundo a Ligue de l’Enseignement de Paris, que detém os direitos do material na França, o objetivo é “desenvolver comunidades tolerantes e inclusivas”, já que o bullying acontece, em geral, em grupos pouco tolerantes, instáveis e onde predomina a insegurança.

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Na Dinamarca, o método é bem avaliado por 70% dos profissionais de educação, que consideram que as crianças cuidam mais umas das outras após participarem do programa.

Se as aulas de empatia ainda precisam de um programa à francesa, tanto governo quanto educadores e associações de combate ao bullying concordam que desenvolver o aprendizado das emoções das crianças é tão importante quanto ensiná-las a ler, escrever e contar.

— Poucas crianças conhecem suas emoções. Eles consideram a raiva e tristeza negativas — afirma Nora Fraisse, à frente da Associação Marion La Main Tendue, que começou o ativismo contra a violência na escola há dez anos, depois que a filha, Marion, de 13 anos, se matou por não suportar o bullying. — Quando não se compreende a raiva, não se sabe acalmá-la e ela pode ser confundida com a violência.

Maior aceitação

Para o doutor em Psicologia e em Sociologia Omar Zanna, autor da obra “Cultivar a empatia na escola”, ao compreender as próprias emoções, a criança é mais preparada para aceitar as dos colegas e a cooperar. Mas, para Zanna, que já fez pesquisas sobre os benefícios do trabalho sobre emoções para jovens delinquentes, as aulas de empatia não devem ser ensinadas como uma matéria à parte, mas, sim, integradas a todas as disciplinas.

— Não ensinamos empatia como matemática. Ela é uma competência transversal, mais ligada a uma postura profissional dos professores — diz ele.

Nora Fraisse considera que a aula de empatia precisa envolver todos os adultos à volta das crianças.

— Costumo dizer que os adultos precisam ser os primeiros a aprender porque eles podem ser violentos e as escolas, espaços hostis — frisa ela.

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Mãe da menina Séraphine, de 9 anos, que por um ano se trancava no banheiro para chorar devido aos insultos e ameaças de uma colega de turma, Camille Dubourg afirma que as aulas de empatia serão pouco efetivas sem a participação dos pais:

— Não adianta fazer curso de empatia se os valores não forem ensinados em casa.

Fundamentais para detectar rápido casos de bullying e evitar suicídios, os professores muitas vezes falham porque não recebem a formação adequada, avalia António Martins, da Associação Parle, Je t’écoute, que faz palestras em escolas para sensibilizar crianças e adultos.

Ele se recorda de uma palestra numa escola primária em que, ao perguntar o que significava bullying para os alunos e ouvir palavras como “tapa”, “empurrão”, “racismo”, oito das 24 crianças presentes começaram a chorar, a maior parte delas porque vivia uma rotina de violência.

— A professora ficou arrasada porque não imaginava que aquilo pudesse estar acontecendo com os seus alunos — afirma ele.

Socos, rasteiras e furtos

A arquiteta Ermeline Dupont, mãe de uma menina que sofreu uma rotina de socos, rasteiras e furto de material escolar no último ano da escola primária, preferiria que as aulas de empatia fossem dadas por psicólogos. Atualmente, uma em cada 10 crianças é vítima de bullying na França, de acordo com as estatísticas oficiais.

— As aulas parecem uma boa intenção, mas não vão funcionar na prática. Os professores vão encará-las apenas como obrigação — opina ela.

Na Dinamarca, berço do projeto que inspira os franceses, a professora Marilyn Christiansen conta que tem uma rotina de cursos de aperfeiçoamento e grupos de discussão entre pares que dão aula para uma mesma faixa etária. Os alunos do colégio têm conversas periódicas com conselheiros, em que podem expor problemas com bullying. O mais importante, para Christiansen,é que são menos pressionados que os estudantes franceses.

— O ensino é mais dedutivo e voltado para que as crianças achem a solução para seus problemas —diz Christiansen.

*Especial para O GLOBO.