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Ao vivo da selva de Darién: migrantes viram influenciadores nas redes sociais e mostram realidade da perigosa travessia

TikTok, Facebook e YouTube estão transformando a migração global, tornando-se ferramentas tanto para migrantes como para coiotes

Agência O Globo - 22/12/2023
Ao vivo da selva de Darién: migrantes viram influenciadores nas redes sociais e mostram realidade da perigosa travessia
Ao vivo da selva de Darién - Foto: Reprodução

Manuel Monterrosa partiu para os Estados Unidos no ano passado com seu celular e um plano: ele registraria sua jornada pela perigosa selva conhecida como Tampão de Darién e postaria no YouTube, alertando outros migrantes sobre os perigos que enfrentariam. Em sua série de seis partes, editada inteiramente em seu telefone durante o percurso, ele segue para o norte com uma mochila, levando os espectadores em um vídeo selfie que descreve passo a passo sua passagem por rios, florestas lamacentas e uma montanha conhecida como Colina da Morte.

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Eventualmente, ele chegou aos Estados Unidos. Mas, para sua surpresa, seus vídeos começaram a atrair tantas visualizações e a ganhar dinheiro suficiente no YouTube que ele decidiu que não precisava mais viver lá.

Assim, Monterrosa, um venezuelano de 35 anos, voltou para a América do Sul e agora tem um novo plano: percorrer a rota de Darién novamente, desta vez em busca de conteúdo e cliques, tendo aprendido a ganhar a vida como um migrante perpétuo.

— A migração vende — disse Monterrosa. — Meu público é um público que quer um sonho.

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Por mais de uma década, os celulares têm sido ferramentas indispensáveis para pessoas que fogem de seus países de origem, ajudando-as a pesquisar rotas, encontrar amigos e entes queridos, conectar-se com traficantes de pessoas (ou "coiotes") e evitar as autoridades.

Agora, celulares e plataformas de mídia social como Facebook, YouTube e TikTok estão mudando drasticamente a equação mais uma vez, alimentando a próxima evolução do movimento global.

Hoje, os migrantes são os produtores de um enorme almanaque digital da jornada para os Estados Unidos, documentando a rota e seus perigos com tanto detalhe que, em alguns trechos, as pessoas podem encontrar o caminho por conta própria, sem coiotes.

E à medida que os migrantes transmitem suas lutas e sucessos para milhões em seus países de origem, alguns estão se tornando celebridades e influenciadores, inspirando outros a fazerem a jornada também. Suas postagens, fotos, vídeos e memes não são apenas em espanhol, mas também nas diversas línguas faladas por migrantes de todo o mundo, que estão cada vez mais chegando à fronteira sul dos Estados Unidos.

Alguns influenciadores, como Monterrosa, que estudou comunicação na Venezuela, estão ganhando alguns centenas de dólares por mês de empresas como o YouTube — muitas vezes muito mais do que ganhavam em casa. Durante um bom mês, Monterrosa diz que ganhou US$ 1 mil em pagamentos, quatro vezes o salário mínimo na Colômbia, onde ele mora agora.

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Mas o conteúdo pode ser mais lucrativo para as empresas de mídia social, que ganham dinheiro com postagens sobre migração da mesma forma que fazem com vídeos de gatos, dizem os especialistas: quanto mais tempo os espectadores assistem ou rolam a tela, mais anúncios podem ser exibidos.

Postagens em espanhol com a tag #migracion no TikTok têm quase 2 bilhões de visualizações, de acordo com dados reportados pela plataforma. O mesmo acontece com postagens marcadas com #darien, que às vezes aparecem entre anúncios da H&M e do iPhone15.

No Facebook, grupos relacionados à migração florescem - um deles tem mais de 500.000 membros - criando um mercado aberto para coiotes que se autodenominam "conselheiros" ou "guias".

A empresa afirma que oferecer serviços de contrabando viola suas políticas e que faz um enorme esforço para identificar e remover esse conteúdo, inclusive trabalhando com as Nações Unidas. Ainda assim, o New York Times encontrou mais de 900 casos de usuários do Facebook oferecendo passagem para os Estados Unidos.

"Acompanhando você em direção aos seus sonhos", dizia uma postagem recente no Facebook, onde um grupo se autodenomina uma "agência de viagens" e anuncia várias rotas pelo Darién.

O Facebook removeu esta e centenas de outras postagens sinalizadas pelo NYT. Um representante da empresa chamou "a segurança de nossos usuários" de prioridade, reconhecendo que era um desafio acompanhar a quantidade "alucinante" de informações no site.

No centro dessa conversa digital está o Darién, a perigosa selva que atravessa a América do Sul e do Norte, crescendo de uma floresta densa e raramente percorrida para uma passagem de migrantes.

O Darién é a única maneira de entrar no Hemisfério Norte a pé. Por muito tempo percorrido por apenas algumas milhares de pessoas por ano, rapidamente se tornou um rito de passagem assustador, cruzado por mais de 500 mil migrantes de mais de 100 países apenas este ano, segundo as autoridades no Panamá, onde a selva termina.

A agitação política e o caos econômico da pandemia estão alimentando o aumento, mas autoridades da Colômbia aos Estados Unidos afirmam que os celulares e as mídias sociais são, sem dúvida, aceleradores.

— Vi as histórias deles no Facebook — disse Irismar Gutiérrez, um venezuelano de 22 anos prestes a se aventurar no Darién, referindo-se a todas as postagens de amigos e familiares que chegaram aos Estados Unidos.

Darién na TV

O Darién, antes pouco conhecido ao redor do mundo, atraiu tanta atenção que em breve pode se tornar um programa de televisão, com uma equipe de 24 aventureiros planejando uma expedição de jipe pela selva. Os produtores dizem que esperam conseguir "até 40 milhões de visualizações por mês apenas pelo TikTok".

Para o alarme da administração Biden, o número de venezuelanos cruzando o Darién decolou no ano passado à medida que fotografias e vídeos se espalharam pelo TikTok, Instagram e Facebook mostrando venezuelanos que haviam chegado aos Estados Unidos.

Desde então, o universo das redes sociais do Darién só explodiu. No TikTok, um vídeo alegre e quase comovente do Darién, com migrantes acenando e pulando em um rio verde-esmeralda, tem quase 13 milhões de visualizações. Um usuário do Facebook com quase 500 mil seguidores, chamado El Chamo ("o cara jovem" em espanhol venezuelano), postou vídeos do Darién e depois uma continuação chamada "Meu primeiro emprego nos Estados Unidos".

Muitos criadores de conteúdo migrante dizem que estão agindo como jornalistas e educadores cidadãos, ajudando os outros a entender o que a rota exige e a tomar decisões informadas sobre se arriscar ou não.

Na minissérie sobre sua jornada para os Estados Unidos, Monterrosa passa pelo corpo de um homem que parece estar perto da morte e considera a terrível questão, enfrentada por quase todos os migrantes na rota, de parar e ajudar uma pessoa que não pode continuar.

— É desumano não ajudar? — ele pergunta.

Ele foi informado por outros que os inspirou a seguir para o norte. Mas Monterrosa não se vê como incentivador da migração em larga escala.

Ele diz que fatores muito maiores são os culpados por isso — como as crises nos países de origem dos migrantes, a demanda por mão de obra barata nos Estados Unidos, políticas de imigração que forçam as pessoas a rotas ilegais e as plataformas de mídia social que se beneficiam do influxo de novo conteúdo.

Facebook e TikTok também estão inundados com os rostos de pessoas que desapareceram ou morreram no Darién, muitas vezes acompanhados por apelos desesperados de familiares em busca de qualquer informação sobre seus entes queridos.

"Já se passaram 34 dias sem nenhuma notícia deles", diz uma postagem no Facebook, acima das fotografias de dois meninos do Equador.

Outra, com uma imagem de uma criança com fralda, inclui um apelo pelo nome e parentes da criança, porque sua mãe "afundou em um pântano".