Internacional

Conflito no Sudão deixa mais de 7 milhões de pessoas deslocadas, segundo a ONU

Combates entre o Exército sudanês e os paramilitares das Forças de Apoio Rápido (FAR) já duram oito meses, contabilizando 12 mil mortos e uma crise humanitária sem precedentes

Agência O Globo - 21/12/2023
Conflito no Sudão deixa mais de 7 milhões de pessoas deslocadas, segundo a ONU
Conflito no Sudão deixa mais de 7 milhões de pessoas deslocadas, segundo a ONU

Mohammed Ibrahim tinha acabado de se instalar em Wad Madani, após deixar sua casa na capital sudanesa, Cartum — afetada pela guerra entre o Exército sudanês e os paramilitares das Forças de Apoio Rápido (FAR), que começou em abril —, quando precisou abandonar tudo pela segunda vez. O caso de Ibrahim não é isolado: mais de sete milhões de pessoas foram deslocadas pelos combates no Sudão, informou a Organização das Nações Unidas (ONU) nesta quinta-feira.

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"Segundo a Organização Internacional para as Migrações, até 300 mil pessoas fugiram de Wad Madani, no estado de al-Jazira, em uma nova onda de deslocamentos em larga escala. Esses últimos movimentos elevarão a população deslocada do Sudão a 7,1 milhões de pessoas, a maior crise de deslocados do mundo", disse o porta-voz do secretário-geral da ONU, Stéphane Dujarric.

Antes que os combates devastassem a capital do estado, al-Jazira chegou a ser um refúgio para meio milhão de pessoas, como Ibrahim e seus familiares, ao ponto de Wad Madani, sua principal cidade, acabar se tornando um "centro humanitário", segundo a ONU. A região fica a 180 km da capital, ao sul.

A cidade foi atacada no dia 15 de dezembro, quando os paramilitares, que já controlam a maior parte da capital, avançaram para o sul ao longo da rodovia que liga Cartum a Wad Madani, tomando uma cidade após a outra, forçando Ibrahim e seus parentes a fugirem novamente.

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O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), que retirou seu pessoal na semana passada, quando os combates chegaram à cidade, pediu nesta quinta-feira o salvamento de "vidas em todas as áreas afetadas, já que as necessidades humanitárias aumentam vertiginosamente".

"Nossos colegas no Sudão ouviram histórias arrepiantes das viagens penosas que mulheres e crianças têm sido obrigadas a fazer para chegar à cidade de Madani", declarou Catherine Russell, diretora do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), acrescentando: "Essa frágil sensação de segurança se partiu em pedaços, já que estas mesmas crianças têm sido obrigadas a abandonar seus lares. Nenhuma criança deveria experimentar os horrores da guerra. As crianças deviam ser protegidas".

Fugindo a pé

Na terça-feira, após quatro dias de intensos combates em Wad Madani, cerca de 300 mil pessoas haviam fugido do estado, muitas "a pé e em pânico", segundo a ONU.

Ibrahim e sua família se refugiaram em Sennar, a 100 km ao sul de Wad Madani, mas têm dificuldades para encontrar um apartamento, explicou à AFP. Outros, como Abdelrahim Imam, de 44 anos, buscaram refúgio na casa de um amigo em al-Faw, a 75 km de Wad Madani. Ele deixou sua casa em Cartum há meses.

"É uma tragédia humana de proporções gigantescas, que agrava a crise humanitária que, por si só, é terrível no país", advertiu nesta quinta-feira a agência da ONU para as Migrações (OIM).

Situação humanitária 'desastrosa'

À medida que os paramilitares entravam, os meios de transporte ficavam cada vez mais escassos em Wad Madani. Omar Husein, de 65 anos, precisou caminhar 10 km até encontrar um ônibus para ele e sua família.

— Estamos tentando ir para Gedaref [a 240 km a leste] — explica o idoso. — Temos familiares lá e poderemos ficar com eles.

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O problema é que tanto em Gederef quanto em Sennar, "a situação humanitária é desastrosa", alerta a Agência da ONU para os Refugiados (Acnur), que adverte para o perigo de "agravamento da crise pelos deslocamentos forçados".

Com cerca de 70% dos hospitais fora de serviço nas zonas de combate, a ONU está muito preocupada com um "sistema de saúde no limite de suas capacidades", e denunciou esta semana as violações generalizadas dos direitos humanos nos combates em Wad Madani.

Nesta quinta-feira, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) apelou para "proteger de todos os civis" e garantir-lhes saídas seguras. Em paralelo, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) viu-se obrigado a suspender temporariamente a ajuda em várias zonas de al-Jazira, que viraram um "campo de batalha".

Quase 18 milhões de pessoas estão em situação de "insegurança alimentar grave" no Sudão, segundo o PMA.

Entenda o conflito

A crise irrompeu no Sudão em 15 de abril, entre as tropas dos dois generais que tomaram o poder em um golpe de Estado de 2021, após romperem e passarem a disputar o controle do país: o comandante do Exército, Abdel Fatah al-Burhan, e seu então número dois Mohammed Hamdan Dagalo, conhecido como "Hemedti", comandante do grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (FAR).

Antes aliados, ambos agora divergem sobre os planos de integração das FAR ao Exército oficial, uma condição crucial do acordo final para a retomada da transição democrática no Sudão, que teve início em 2019 — com a queda do ditador Omar al-Bashir após três décadas no comando.

O conflito, que perdura há mais de oito meses, levou a um aumento nos preços de itens essenciais, além do fechamento de unidades de saúde e a escassez de água, remédios, alimentos e combustível, contribuindo também para o movimento massivo de fuga entre os sudaneses, sobretudo na capital de mais de cinco milhões de habitantes. Já são mais de seis milhões de deslocados e ao menos 12 mil mortos, segundo a ONU, um balanço incerto seguramente muito conservador, porque várias regiões do país estão sem comunicação.

Apesar de algumas tréguas temporárias, ainda não há um vislumbre de solução para o conflito. Por isso, a agência para as Migrações enfatizou a "necessidade de um cessar-fogo para evitar uma catástrofe mais ampla".