Internacional

Cansaço da guerra: excesso de informação e sensação de impotência explicam fadiga de conflitos longos

Observadores detectam a diminuição, em relação às primeiras semanas, da atenção dada a conflitos como a guerra entre Israel e Hamas; O GLOBO conversou com especialistas para investigar as razões

Agência O Globo - 17/12/2023
Cansaço da guerra: excesso de informação e sensação de impotência explicam fadiga de conflitos longos
Foto: Reprodução

Números, audiência, engajamento e protestos apontam para a mesma direção. Na contabilidade do ciclo de notícias, nas redes sociais ou nas ruas dos grandes centros globais, observadores detectam a diminuição, em relação às primeiras semanas do conflito, da atenção dada por quem está distante geograficamente da guerra entre o Hamas e Israel. Constatação semelhante se deu poucos meses após a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022.

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Para investigar razões e consequências da falta de interesse com o passar do tempo, O GLOBO conversou com duas psicanalistas brasileiras e um dos principais estudiosos do ativismo social e de movimentos culturais de massa dos EUA.

Diretor do Centro de Pesquisas de Ativismo e Arte da Universidade de Nova York (NYU), Stephen Duncombe se debruçou sobre a “fadiga da compaixão”. Ela anda mais palpável, crê, com a percepção cada vez mais nítida de que pouco se pode fazer de forma prática, “além de passar o dedo pra cima e pra baixo no celular e se deprimir com as notícias da guerra”, em meio ao apoio dos EUA a Israel e ao veto por Washington das propostas de cessar-fogo apresentadas na ONU.

A psicanalista Ana Maria Medeiros da Costa, doutora em Psicologia Clínica e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também já detectou na prática clínica essa mudança de foco. E destaca entre as hipóteses os efeitos da “cultura de excessos das redes sociais”, que nos leva a acompanhar sequencialmente temas do momento em bolhas polarizadas, excluindo a possibilidade de diálogo, “da conversa, essencial para nos libertar dos impasses”.

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E Maria Homem, psicanalista e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), detecta o narcisismo de quem se mobilizou com a guerra, mas para se posicionar no centro do palco. Mesmo distantes geograficamente do front, demonstraram uma “indignação moralizante”, a serviço de uma redenção pessoal e não em busca da verdade factual. Para estes, diz, jamais existiu comprometimento de fato com o tema. Abaixo seguem trechos editados dos depoimentos dos três estudiosos ao GLOBO:

Stephen Duncombe

‘É preciso ultrapassar a fadiga da compaixão’

Para quem não é ator nem vítima direta de conflitos armados, é possível entrar e sair deles pelo noticiário e redes sociais sem experimentar grandes sequelas além de uma fadiga de compaixão. Algo como quando você se depara com uma pessoa em situação de rua em seu quarteirão. Você quer saber a história dela, encontrar maneiras de ajudá-la. Mas, se em um ano, cinco pessoas passam a viver nas ruas perto de sua casa, mesmo você sendo um bom cidadão, provavelmente seguirá sua rotina, dizendo a si mesmo ser impossível resolver problema dessa dimensão.

Pode-se também dar às costas a guerras de expressão global sem se questionar eticamente. É quando a atenção se volta para temas em que se acredita ter voz ativa: como pagarei as contas no fim do mês? Como anda meu casamento? Afinal, o que mais posso fazer de forma prática sobre Ucrânia, Rússia, Israel e a Faixa de Gaza, além de seguir as notícias e cair em depressão?

Protestar, defender publicamente o pacifismo, a democracia, a inviolabilidade das nações? Mesmo no ativismo, meu campo de estudo, lidamos com dificuldade central: como manter as pessoas atentas a longo prazo em uma realidade cada vez mais fragmentada?

As guerras não terminam em semanas, e as pessoas hoje não se mantêm atentas a um filme de duas horas! Sendo brutalmente honesto: uma manifestação de 5% de estudantes de elite contra os bombardeios em Gaza mudará o quê? A sensação de impotência é combustível para a desatenção.

Mostrar de forma isenta o que acontece nas guerras segue essencial. A única luz que vejo no fim do túnel é o compromisso com a verdade, mesmo que não garanta a atenção coletiva e seja um desafio para o modelo de negócios da imprensa séria. Precisamos pensar no cidadão como alguém capaz de ultrapassar a fadiga de compaixão, se alimentar da verdade e usá-la como ferramenta pra transformar a realidade. Boa sorte pra nós.

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Ana Maria Medeiros da Costa

‘A notícia interessa menos do que a identificação com um dos lados’

Uma das hipóteses para essa desatenção, que já percebo inclusive no consultório, é o protagonismo da cultura do excesso das redes sociais. Um dos afetos mais constantes hoje é a apatia, que produz indiferença. Por exemplo, a incapacidade de distinguir a morte de uma pessoa do assassinato em massa, de se graduar o valor da informação.

Hoje as pessoas são submetidas a afirmações e a seus exatos contrários em curto espaço de tempo, como se tivessem valores equivalentes. Uma dinâmica típica da linguagem mais totalitária das redes.

Penso em Victor Klemperer, o acadêmico judeu que estudou a linguagem do nazismo e seu efeito psicológico nas milhares de pessoas submetidas a uma ação de massa de desorientação de valores. Fenômeno que se dá agora de certa forma com as fake news, não apenas por manipulação guiada mas também pela aceitação do sujeito — que, mesmo quando vê uma notícia ao vivo, encontra maneiras de desacreditá-la. E tenho sérias dúvidas de que, na era das fake news, algo poderá nos trazer de volta ao centro a verdade.

Nessa dinâmica, a reação inicial às guerras tem grande ligação afetiva aparente, mas ela em seguida se farta na lógica do consumo. A emoção e indignação iniciais não se transformam em afeto.

O noticiário é então transportado para o campo das relações: a atenção à guerra migra para a briga entre amigos, na família. Em representações do bem e do mal, em explosões de preconceitos, absorvidos de forma polarizada. Extingue-se o espaço para a conversa, que, também do ponto de vista analítico, é essencial para se evoluir das situações de conflito. É um buraco sem fundo, causado pelo desuso da verdade. E a notícia e a realidade passam a interessar menos do que a identificação veloz com um lado da narrativa.

Maria Homem

‘O choro pelas vítimas pode ser lágrima por si mesmo’

Somos máquinas de compreender o mundo e sobreviver movidas pelas diferenças. Se alguém bater palma, nos movemos naquela direção. Mas será que estamos mesmo mais desatentos ou há mais nuances nisso?

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, tentamos identificar se Kiev era a vítima, se Moscou agiu ameaçada pela Otan. Imprimimos nosso filtro simbólico e ideológico para decodificar a informação. Criamos um mapeamento sociopolítico subjetivo da situação. Nessa geografia, a identificação com o que o coletivo crê vem sendo cada vez mais valorizada. É importante se aliar ao “lado certo” e afirmar esta “certeza”. Até, claro, ouvir o próximo bater de palmas e desviar a atenção, que pode ser tanto para o conflito entre Israel e Hamas quanto para um show da Taylor Swift.

Não diminuo aqui o valor simbólico e a capacidade de lidar com questões profundas do humano em espetáculos. É um exemplo para apontar o aspecto narcísico dessa “desatenção”. É que quando mergulhamos no noticiário de guerra, o palco hoje pode se confundir. Nele também estão a lacração e o protesto indignado. O fato em si pode estar longe geograficamente, mas é possível se perceber dentro da arena, parte da torcida moralizante que julga e nomeia: quem é o opressor, o colonizador, o terrorista, o genocida, a vítima. E os batiza não a partir da busca da verdade factual, mas de opinião superegoica.

Não há, nestes casos, real preocupação com o outro, nem se acha estranho a migração para o próximo bater de palmas sem que se tenha refletido sobre o que acabou de acontecer. Não há comprometimento. O choro físico pelas vítimas da guerra do momento pode ser, na realidade, lágrima apaixonada por si mesmo.

Usa-se o sofrimento do mundo como objeto de ratificação da “alma nobre”. Não importa se o conflito em Gaza tenha ficado ainda mais complexo com o passar do tempo, a atenção migrou. Essa guerra, assim, “já passou”, pois o que se atenta mesmo é para a própria indignação.