Internacional

Organizações criminosas no Brasil têm 'elementos de paramilitarismo', afirma especialista em segurança pública

Thiago Rodrigues, professor no Instituto de Estudos Estratégicos da UFF, explica diferenças entre empresas militares e de segurança privadas, e como grupos ilegais emulam estruturas do Estado

Agência O Globo - 17/12/2023
Organizações criminosas no Brasil têm 'elementos de paramilitarismo', afirma especialista em segurança pública
Organizações criminosas no Brasil têm 'elementos de paramilitarismo', afirma especialista em segurança pública - Foto: Reprodução

Em meio ao debate sobre o avanço dos grupos militares privados na América Latina, destacado pela presença crescente do Grupo Wagner na Venezuela, especialistas apontam que a discussão também deve incluir organizações que, embora não sejam corporações devidamente registradas, operam com táticas e doutrinas semelhantes: os grupos criminosos, como facções do narcotráfico ou quadrilhas de contrabando, presentes em toda a região e que, tal como alguns grupos militares, usam a violência para obter o seu objetivo principal, o lucro.

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Em conversa às margens de uma conferência que discutiu as empresas militares privadas legais e ilegais, no Panamá, O GLOBO conversou com Thiago Rodrigues, especialista em segurança pública, professor do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF e autor do livro “Política e drogas nas Américas: uma genealogia do narcotráfico”. Thiago explicou algumas das semelhanças entre organizações criminosas e grupos paramilitares, e traçou um cenário da segurança privada no Brasil. Confira alguns dos trechos da conversa.

Existe uma grande confusão quando a gente fala de empresas de segurança e empresas militares, ainda mais no contexto do Brasil. Explique essa diferença entre esses dois tipos, e como essas definições às vezes caem em uma zona cinzenta…

Temos que pensar em termos de capacidade operativa e de estrutura. Uma empresa de segurança privada é o que a gente tem no Brasil em profusão. Os dados da Polícia Federal indicam que são aproximadamente 3 mil registradas. Essas empresas são aquelas que visualizamos no dia-a-dia: transporte de valores, de segurança patrimonial, comercial e residencial, vemos inclusive viaturas nas ruas dessas empresas. Isso é bastante comum no nosso panorama brasileiro, em uma situação de crise de segurança pública permanente que tem estimulado a formação de empresas desse tipo. A empresa militar privada é uma outra categoria: elas se assemelham a pequenos exércitos, ou grupos especiais, como comandos militares, formados para atuar em um contexto de conflito armado ou na proteção, por exemplo, de infraestruturas ou de pessoas em em contextos de confronto. Isso não é comum no Brasil, essas empresas atuam em locais de conflito ou de perigo, relacionado a áreas de confrontação. Na América Latina é muito comum encontrar empresas militares privadas em países como Colômbia e na América Central. Também na África, em diversos países, na Ásia e no Oriente Médio. Essas empresas são geralmente de caráter multinacional, têm bases geralmente em paraísos fiscais ou países que têm facilitação ou vivem em um limbo jurídico que permite que atuem sem controle ou com pouco controle jurídico, e com pouco controle também do fluxo comercial e financeiro. Então temos que lidar com essas duas realidades. No Brasil há uma realidade muito concreta, que são as empresas de segurança privada, mas não as empresas militares privadas, elas são coisas diferentes.

A legislação brasileira que detalha as atividades de empresas de segurança privada é relativamente nova. Há dentre as normas aprovadas a previsão relacionada a eventuais empresas de prestação de serviços militares privados por aqui?

A lei que agora tentou organizar esse processo que era muito era muito fragmentado em legislações, estaduais e em algumas normativas federais é de abril de 2023 [Portaria DG/PF n° 18.045]. E ela trata das empresas de segurança privada, e não de companhias militares privadas. Ela é especificamente a respeito de quem pode oferecer esse tipo de serviço e as formas de oferecer esse serviço. Guarda de patrimônio, segurança pessoal, comercial, residencial. Basicamente o que já existe, mas que está tentando se organizar por uma lógica padronizada. Não existia uma norma padronizada e diz respeito a uma fiscalização da Polícia Federal, o que é um problema, porque a Polícia Federal pode ter competência para fazer a fiscalização, mas muito provavelmente não tem capacidade operacional para fazer essa fiscalização diante desse universo grande de empresas, e talvez muitas outras que venham se legalizar a partir dessa lei.

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Se olharmos pela definição de uma empresa militar privada vamos encontrar vários grupos e organizações criminosas no Brasil que praticamente atendem a todos os requisitos. É possível incluir o debate sobre essas organizações criminosas dentro dessa conversa sobre os grupos militares privados na América Latina ou são duas caixinhas separadas?

As caixinhas são basicamente caixinhas de legalidade, né? Porque os grupos se a gente for perseguir a sua estrutura, o seu propósito...qual é o propósito? O propósito é o lucro? Esse propósito é tanto de uma empresa militar privada legal, quanto de uma empresa ou um grupo armado ilegal, todos visam ao lucro. Geralmente não são grupos com propósitos políticos. Diferentemente de outras regiões como a África, onde há grupos militares privados que têm um propósito de lucratividade como um elemento central, mas que muitas vezes para viabilizar esses propósitos acabam se envolvendo com a política de alguns países, patrocinando golpes de Estado ou sendo utilizados como força para golpes de Estado. Por vezes até assumindo posições de comando em países. Mas, é claro, sempre para viabilizar seu fim, que é lucratividade. No caso da América Latina, em países que têm estruturas político-sociais estabelecidas, esses grupos armados ilegais atuam no campo da ilegalidade comercial. Ou seja, buscando lucratividade no campo das atividades econômicas ilícitas. Não têm atividades políticas como fim, mas são grupos que tem estruturas de funcionamento que guardam semelhança com as formas, digamos, oficializadas de companhias armadas.

Dá para chamar alguns desses grupos criminosos de organizações paramilitares?

O que existe nesse processo todo é uma imagem, um modelo, uma estrutura de paramilitarização. Porque a gente fala de paramilitar no sentido do termo conceitual: "para", de paralelo, que está reproduzindo algo. Então se existe uma companhia de segurança militar, ela tem uma estrutura paramilitar, ou seja, um modelo básico de estrutura militar do Estado, só que reproduzida no plano privado. Um grupo armado ilegal, com expressão de violência, como uma facção do narcotráfico ou uma grande incorporação ilegal, apresenta elementos de paramilitarismo também, na medida em que copiam modelos hierárquicos de organização, de treinamento, utilização de táticas de deslocamento e de ação. Então existe uma emulação. Existe uma cópia, uma inspiração e uma aplicação de modelos que vêm do modelo oficial, do modelo estatal de militarização. Por isso acho que seria mais correto chamar de um fenômeno de paramilitarização, cujo objetivo não é basicamente político, mas sim a lucratividade ilegal.

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Ainda na América Latina, especialmente em áreas de fronteira, você vê o crescimento desses grupos militares privados, legais e ilegais, como uma ameaça à soberania dos Estados?

A discussão sobre ameaça à soberania é sempre complicada porque falamos de regiões de fronteira que sempre tiveram situações de soberania fluidas. Se imagina que fronteiras sejam linhas muito claras e determinadas, e dificilmente você encontra em qualquer parte do mundo fronteiras com essa característica. Muito menos na América Latina, e muito menos em regiões remotas ou de difícil ocupação, como é o caso da da Região Amazônica. Essas fronteiras são porosas na prática, sempre foram. E a dinâmica de fluxo entre um país e outro sempre é a característica básica dessas regiões, então do ponto de vista formal esses grupos não ameaçam a soberania, porque a soberania é um conceito formal, e que não existe na prática. Ela é relativa. Então esses grupos atuam justamente nessa faixa de relatividade. Esse é um primeiro ponto. O segundo ponto diz respeito aos objetivos políticos. Eles não querem estabelecer uma zona de autoridade paralela ao Estado. Eles não têm objetivo de criar um outro país ou de fragmentar um país, eles são grupos que atuam na ilegalidade e vivem nas sombras, em zonas é de intersecção do legal e do ilegal. O objetivo desses grupos é justamente atuar nessas regiões para maximizar suas capacidades de lucratividade, lidando com todo tipo de legalidade. Desde tráfico de drogas, contrabando de produtos, tráfico de pessoas, de riqueza natural, de mineração ilegal. Não existe uma exclusividade. Às vezes surge a ideia de que os grupos têm produtos preferenciais, mas eles lidam com todas oportunidades de negócio, e essas oportunidades de negócios são ilegais.

O jornalista viajou ao Panamá a convite de CRDF Global, organização sem fins lucrativos parcialmente financiada pelo Congresso dos EUA, e do Departamento de Estado dos EUA.