Internacional

'O mundo tem de trabalhar muito em relação ao discurso de ódio', diz presidente da Conib

Representante da comunidade judaica no Brasil, Claudio Lottenberg nega haver desproporcionalidade da reação israelense durante a ação contra o Hamas

Agência O Globo - 15/12/2023
'O mundo tem de trabalhar muito em relação ao discurso de ódio', diz presidente da Conib
'O mundo tem de trabalhar muito em relação ao discurso de ódio', diz presidente da Conib - Foto: Reprodução

O presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib), Claudio Lottenberg, responsabiliza o grupo terrorista Hamas pelo custo de mortes de civis na Faixa de Gaza durante o conflito atual com Israel, iniciado após o pior ataque em solo israelense desde a formação do Estado judeu, em 1948, que matou 1,2 mil pessoas e deixou outras 240 como reféns. Do lado palestino, ao menos 18 mil pessoas já morreram, segundo o Ministério da Saúde do território. Segundo Lottenberg, a sociedade palestina também seria responsável pela situação atual por ter escolhido o grupo como liderança política do enclave.

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Em entrevista ao GLOBO, o representante da comunidade judaica brasileira negou que a ação de Israel em Gaza seja desproporcional e que os bombardeios e a invasão por terra possam representar um risco de um genocídio — possibilidade observada pela ONU.

Ao lamentar a violência da guerra, Lottenberg aponta que há um aumento do antissemitismo no Brasil e do discurso de ódio no mundo, afirmando que a expectativa da comunidade judaica para o fim do conflito é uma resolução rápida e que termine com a criação de dois Estados que possam coexistir em paz. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

A Assembleia-Geral da ONU aprovou na terça-feira uma resolução pedindo um cessar-fogo imediato em Gaza, mesmo dia em que o presidente dos EUA, Joe Biden, alertou Israel a tomar cuidado para não perder todo o apoio internacional no combate ao Hamas. Como vê o aumento de pressão externa sobre o andamento da operação de Israel em Gaza?

Em termos de imagem, isso era esperado. Passados alguns dias, acaba ficando para trás o real motivo dessa guerra, que é justamente o ataque de natureza terrorista, que não só mata, como sequestra. No momento em que Israel começa a reagir, aquilo que motivou o conflito acaba substituído por um sentimento de que Israel não está se defendendo. Por mais que Israel tenha preocupação com os civis palestinos, por mais que Israel esteja buscando os terroristas do Hamas, isso acaba não se restringindo a eles. O presidente Biden, que é um aliado de Israel, teme pela repercussão internacional, porque se o conflito aumentar, pode envolver outros países. É uma condição da geopolítica. Quanto às Nações Unidas, a gente sabe que o plenário condena Israel por tudo que faz, não é de hoje. É uma sistemática. Eles não querem saber o que foi feito. Como há uma grande quantidade de países árabes e com influência da esquerda, no plenário Israel sempre foi condenado. [A resolução] repete um padrão de entendimento sobre Israel que, ao meu ver, é pautado por uma linha antissemita, que ficou muito transparente durante o conflito atual com o Hamas.

O senhor mencionou os reféns capturados. A maioria dos que foram resgatados até o momento veio por meio da negociação mediada principalmente por Catar, Egito e EUA. Não haveria espaço para uma negociação que evitasse o impacto civil e ajudasse na recuperação de mais reféns?

Caso se chegasse a um caminho mais consistente para essa troca de reféns, os efeitos de uma pressão pelo cessar-fogo seriam muito mais fortes e muito mais sentidos por Israel. A questão é que, para fazer essas trocas, existem dois lados. E o Hamas não fez nenhuma proposta para libertar todos os reféns — pelo contrário, quer manter isso em um compasso lento, para poder desgastar ainda mais a imagem de Israel. É muito difícil negociar com terroristas. As armas, os argumentos e as motivações são muito imprevisíveis dentro de um tabuleiro que envolva negociações. Mas, sem dúvida alguma, se pudesse se encaminhar por esse lado, acho que Israel seria pressionado e teria de aceitar o cessar-fogo. A negociação não é sobre as pessoas que já morreram. Não é uma vingança. Os movimentos de Israel dizem respeito às pessoas que eles sequestraram. Não sei se Israel teria tido o mesmo impulso de reação se por acaso tivessem matado, e não levado reféns.

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Uma das questões levantadas por Biden foi a resistência do setor mais linha-dura do Gabinete de Benjamin Netanyahu à criação de um Estado palestino no pós-guerra. Já há em Israel uma imagem clara para o pós-conflito?

Não represento o Estado de Israel, represento os judeus brasileiros. O que posso dizer é que quem não quis dois Estados foram os palestinos. Tem um resgate histórico que, às vezes, as pessoas não falam de forma adequada. A solução de dois Estados era a proposta original. Tentou-se de novo em 1967, teve 2005... Foram quatro ou cinco tentativas. Sabemos que Israel tem seus radicais, e que eles têm uma posição bastante resistente ao Estado palestino. Mas, nas vezes em que se chegou perto de um acordo, Israel foi capaz, através de diálogo interno e exercício pleno da democracia, de trazer respostas para a criação do Estado. Tanto que desocupou Gaza em 2005. Não é novidade que há pessoas contrárias ao Estado palestino. Novidade é que existia um cessar-fogo, e esse cessar-fogo foi descumprido pelo Hamas. Agora eles querem voltar ao cessar-fogo sem devolver os reféns.

O ataque do Hamas contra Israel foi algo sem precedentes, com violações horríveis, como o abuso e estupro de mulheres. Mas, do lado palestino, a ONU fala em 80% de deslocados internos e a contagem de mortos por autoridades palestinas já passou de 18 mil... Como a comunidade judaica vê esse custo civil do lado palestino?

Vemos com muita tristeza [o custo civil do lado palestino], porque isso nasceu no dia que eles elegeram o Hamas dentro da perspectiva de uma força política naquela região. Se o Hamas não tivesse crescido e ocupado um espaço de liderança, muito possivelmente [os palestinos] não seriam liderados por uma organização terrorista. Eles estão pagando o preço pela liderança que escolheram. Independentemente disso, a comunidade judaica observa com muita tristeza. São seres humanos, são pessoas. Ninguém quer ou imagina uma situação dessa natureza, e lamentamos muito tudo isso. Mas o fato é muito claro. Quem desencadeou isso foi a própria sociedade palestina que os escolheu. Isso não significa que Israel, ou nós judeus, estejamos confortáveis ao ver as incursões em Gaza. O que nos incomoda é a preocupação com o que acontece em Gaza. Não vejo uma movimentação tão grande do governo brasileiro, por parte da imprensa, para discutir o que ocorre na Ucrânia. Vocês sabem quantas pessoas morreram na Ucrânia? Quantas crianças morreram na Ucrânia?

Mas as autoridades de Rússia e Ucrânia não divulgam o número de mortos, talvez até por questão de estratégia, ao contrário do Hamas, que torna esses dados públicos...

Esses números têm como base o grande Ministério da Saúde de Gaza, que dá números com uma facilidade... Israel, que tem uma estrutura de Estado extremamente organizada, não consegue precisar quantas pessoas morrem, mas o Ministério da Saúde de Gaza dá as informações, que passam para o Unicef, que passa para outra agência, e aí a ONU admite que aqueles números são reais. Não estou desmerecendo o gênero humano. Não acho que é normal o que acontece. Não estou minimizando a perda de crianças e civis. Só fico muito preocupado pela forma que isso tem sido tratado, porque está recrudescendo todo um discurso de ódio. Nosso canal de denúncias [da Conib] mostra um aumento de 968%, comparando períodos semelhantes, de atos de antissemitismo no Brasil.

Os EUA aprovaram uma resolução que equipara antissemitismo a antissionismo. Como isso foi recebido pela comunidade judaica? O senhor considera uma medida acertada?

Considero. O sionismo é um movimento de resgate de uma identidade, de um lar nacional judaico. Você tem um país do tamanho do estado de Sergipe, onde uma população pode ter uma identidade dentro de suas crenças, e as pessoas querem perseguir a existência, sobrevivência e legitimidade deste Estado? Isso mexe com a essência da identidade judaica. Isso torna a pessoa antissemita.

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Em entrevista ao GLOBO, a relatora especial da ONU para a Palestina, Francesca Albanese, afirmou que há ataques sistemáticos e generalizados contra a população civil de Gaza, o que indicaria um risco de genocídio em curso no enclave. Como vê essa avaliação?

Vê-se que é uma pessoa tendenciosa. Genocídio não é isso que ela está falando. Os próprios números confrontam o que ela está dizendo. Esse é um crime que exige uma prova de intencionalidade. Israel está fazendo isso intencionalmente? Quem fez genocídio foram os terroristas do Hamas que entraram, mataram 1,4 mil pessoas [Israel revisou o número para 1,2 mil mortos], assumindo que todas eram judias. Israel não está fazendo isso. Israel está buscando seus cidadãos, defendendo-se de terroristas. Não quer eliminar palestinos ou pessoas que vivem naquela região. Querem ir atrás do Hamas em uma ação de defesa. Não há intencionalidade. Além disso, não há nenhum sinal, nesses anos todos, que Israel tenha tido qualquer intenção de extermínio. Se você olhar, de 1947 a 2002, morreram mais ou menos de 29 mil a 58 mil palestinos, falando em números que Israel reconhece. Em Israel, morreram 13 mil pessoas. Não quero relativizar a morte de ninguém, mas morreram 29 mil palestinos e 13 mil em Israel. Que genocídio é esse? Existe um estado de conflito constante, existe uma guerra permanente, mas não é um genocídio.

Com o conflito em Gaza, houve um aumento do antissemitismo e da islamofobia ao redor do mundo. Esses dois preconceitos são equivalentes?

As duas coisas são odiosas. Como é que se pode querer discriminar alguém por não respeitar os seus comportamentos, crenças e opções? O mundo tem de trabalhar muito concentradamente em relação a essa visão do discurso de ódio. Acreditava-se que, com a globalização, os problemas do mundo se resolveriam, mas no fim isso não ocorreu. O que acabou acontecendo foi o surgimento de muitos regimes ultranacionalistas em uma reação à globalização. Esses regimes são um terreno extremamente fértil para o surgimento de discurso de ódio.

Espera que a resolução do conflito tenha capacidade de reverter essa situação?

Talvez o conflito deixe patente para o mundo a necessidade da criação de um Estado palestino. Isso acho que o conflito trará, lá na frente. Por outro lado, não acho que o antissemitismo vá desaparecer — como acho que todos os preconceitos não desaparecerão.

O que a comunidade judaica espera ao fim da guerra?

Primeiro, que tudo se resolva o mais rapidamente possível, porque é muito duro imaginar que estão sendo perdidas vidas humanas em uma condição de guerra. Em segundo lugar, que a gente consiga criar dois Estados — que se respeitem, que possam ter relações pacíficas, que possam fazer acordos comerciais, como sempre deve ser. Por fim, que fique patente que existe uma onda de antissemitismo muito grande. E que a gente possa tirar como prerrogativa uma luta de natureza universal para combater o antissemitismo e o discurso de ódio.