Internacional

Apesar do ressentimento com a França, jovens africanos estão contribuindo para a evolução e difusão da língua francesa

Mais de 60% das pessoas que falam francês diariamente vivem agora no continente africano, e há tantos falantes da língua em Kinshasa, capital do Congo, como em Paris

Agência O Globo - 13/12/2023
Apesar do ressentimento com a França, jovens africanos estão contribuindo para a evolução e difusão da língua francesa
Paris - Foto: Reprodução

O francês — que, segundo muitas estimativas, é a quinta língua mais falada no mundo — está mudando. Talvez não nos corredores dourados da instituição em Paris que publica o seu dicionário oficial, mas num telhado em Abidjan, a maior cidade da Costa do Marfim.

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Lá, numa tarde, uma rapper de 19 anos que atende pelo nome artístico de "Marla" ensaiou seu próximo show, cercada de amigos e garrafas de refrigerante vazias. Suas palavras eram principalmente em francês, mas as gírias da Costa do Marfim e as palavras em inglês que ela misturou formaram um novo idioma.

Falar apenas francês "c'est zogo" — "não é legal" —, disse Marla, cujo nome verdadeiro é Mariam Dosso, combinando uma palavra francesa com gíria da Costa do Marfim. Mas brincar com palavras e línguas, disse ela, é "choco", uma abreviatura de chocolate que significa "doce" ou "elegante".

Um número crescente de palavras e expressões da África está se unindo à língua francesa, estimulado pelo aumento da população jovem na África Ocidental e Central. Mais de 60% das pessoas que falam francês diariamente vivem agora no continente, e 80% das crianças que estudam em francês estão na África. Há tantos falantes de francês em Kinshasa, capital do Congo, como em Paris.

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Através de plataformas de redes sociais como o TikTok e o YouTube, eles estão literalmente espalhando a palavra e remodelando a língua francesa de países africanos, como a Costa do Marfim, que outrora foram colonizados pela França.

— Tentamos fazer rap em francês puro, mas ninguém nos ouvia — disse Jean Patrick Niambé, conhecido como Dofy, um artista de hip-hop marfinense de 24 anos que ouvia Marla no telhado. — Então criamos palavras a partir de nossas próprias realidades, e elas se espalharam.

Legado colonial

Andando pelas ruas de Paris ou de seus subúrbios, você pode ouvir as pessoas usarem a palavra "enjailler" para dizer "diversão". Mas a palavra veio originalmente de Abidjan para descrever como os jovens marfinenses, em busca de adrenalina, na década de 1980, entravam e saltavam dos ônibus que corriam pelas ruas.

A população jovem da África está crescendo enquanto o resto do mundo fica cinzento. Os demógrafos preveem que, até 2060, até 85% dos falantes de francês viverão no continente africano. Isto é quase o inverso da década de 1960, quando 90% dos falantes de francês viviam na Europa e em outros países ocidentais.

— O francês floresce todos os dias na África — disse Souleymane Bachir Diagne, um renomado professor senegalês de filosofia e francês na Universidade de Columbia. — Esse francês crioulizado encontra seu caminho nos livros que lemos, no que assistimos na televisão, nas músicas que ouvimos.

Quase metade dos países da África já foram colônias ou protetorados franceses, e a maioria usa o francês como língua oficial. Mas a França tem enfrentado um ressentimento crescente nos últimos anos em muitos destes países, tanto pelo seu legado colonial como pela sua influência contínua.

Alguns países expulsaram embaixadores e tropas francesas, enquanto outros têm como alvo a própria língua francesa. Alguns romancistas da África Ocidental escrevem nas línguas locais como um ato de resistência artística. A junta governante no Mali, por exemplo, retirou o estatuto oficial da França, e uma medida semelhante está em curso em Burkina Faso.

A reação não passou despercebida na França, onde a evolução do francês provoca debate, se não angústia, entre alguns intelectuais. O presidente francês, Emmanuel Macron, disse num discurso de 2019 que a "França deve se orgulhar de ser essencialmente um país entre outros que aprende, fala e escreve em francês".

Laboratório de línguas

No amplo mercado de Adjamé, em Abidjan, existem milhares de pequenas barracas que vendem produtos eletrônicos, roupas, medicamentos falsificados e alimentos. O mercado é um laboratório perfeito para estudar Nouchi, uma gíria que já foi criada por pequenos criminosos, mas que tomou conta do país em menos de quatro décadas.

Alguns antigos membros das gangues de Abidjan, que ajudaram a inventar o Nouchi, trabalham como guardas patrulhando as vielas do mercado, onde os "homens jassa" — jovens traficantes — vendem produtos para sobreviver. É aqui que nascem e morrem novas expressões todos os dias.

Germain-Arsène Kadi, professor de literatura na Universidade Alassane Ouattara, na Costa do Marfim, certa manhã entrou no mercado carregando consigo o dicionário Nouchi que escreveu. Num "maquis", um restaurante de rua com mesas e cadeiras de plástico, o proprietário reuniu alguns "homens jassa" no canto, ou "soï", para dizer as suas palavras favoritas enquanto bebiam Vody, uma mistura de vodca e energético.

— Eles vão bater em você — disse o proprietário em francês, o que me alarmou até que explicaram que o verbo francês para bater, "frapper", tinha o significado oposto ali.

Aqueles homens jassa nos trataram bem — lançando dezenas de palavras e expressões desconhecidas para mim em poucos minutos.

Kadi rabiscou freneticamente novas palavras em um bloco de notas, dizendo repetidamente:

— Mais uma para o dicionário.

É quase impossível saber qual palavra criada nas ruas de Abidjan pode se espalhar, viajar ou até mesmo sobreviver.

"Go", que significa "namorada" na Costa do Marfim, foi inscrito no conhecido dicionário francês Le Robert este ano.

Este ano, em Abidjan, as pessoas começaram a chamar um namorado de "mon pain" — francês para "meu pão". Os improvisos logo proliferaram: "pain choco" é um namorado fofo. Um pão açucarado, um doce. Um pão recém saído do forno é um companheiro bonito.

Numa igreja em Abidjan no início deste ano, a congregação caiu na gargalhada, disseram-me vários fiéis, quando o padre pregou que as pessoas deveriam partilhar o seu pão com os seus irmãos.

A expressão espalhou-se como um meme nas redes sociais, atingindo os vizinhos Burkina Faso e Congo, a milhares de quilômetros de distância. Ainda não chegou à França. Mas os marfinenses gostam de brincar sobre as expressões que os franceses irão aprender — muitas vezes anos, se não décadas, mais tarde.

— Se o francês se tornar mais misto, então as visões do mundo que eles carregam mudarão — disse Josué Guébo, poeta e filósofo da Costa do Marfim. — E se África influencia o francês do ponto de vista linguístico, provavelmente irá influenciá-lo do ponto de vista ideológico.