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Entenda como petróleo provocou boom econômico na Guiana e atiçou interesse da Venezuela

Realidade econômica do isolado país sul-americano mudou em 2015, quando enorme reserva de petróleo foi descoberta em seu mar territorial, contestado por Caracas

Agência O Globo - 08/12/2023
Entenda como petróleo provocou boom econômico na Guiana e atiçou interesse da Venezuela
Petróleo - Foto: Arquivo

Encravada no norte da América do Sul, cercada por cadeias de montanhas e pela selva amazônica, a Guiana nunca foi motivo de grande atenção no cenário regional. Único país a falar inglês na região e com traços culturais mais próximos das nações do Mar do Caribe do que com os vizinhos por terra, o país era, até pouco tempo, um dos mais pobres do continente e tinha uma presença discreta. Até a descoberta do petróleo.

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Quando a Exxon Mobil descobriu uma reserva massiva e inexplorada de petróleo em águas territoriais do país em 2015, na chamada Margem Equatorial, a Guiana tinha o segundo pior PIB per capita do continente, a frente apenas da Bolívia, país com uma população mais de 12 vezes maior. Os estimados 11 bilhões de barris de petróleo do Bloco Stabroek provocou a maior arrancada econômica do mundo.

Com o "ouro negro", a economia quadruplicou nos últimos cinco anos, fazendo o país ultrapassar o PIB per capita do Brasil ainda em 2021. A Guiana alcançou a 2ª posição no ranking de riqueza por habitante em 2022, ficando atrás apenas do Uruguai, de acordo com dados do Banco Mundial. Entre 2021 e 2022, o país teve o maior crescimento percentual do PIB per capita do mundo: 57%.

A Exxon Mobil mantém 63 projetos de perfuração no bloco, com uma produção diária estimada em 600 mil barris de petróleo por dia. As projeções são de que o crescimento chegue a 1,2 milhões de barris por dia em 2027, em um cenário positivo sustentado.

O Fundo Monetário Internacional (FMI), em setembro, projetou uma expansão da economia da Guiana em 38%, por efeito da exploração de petróleo. Estimativas também apontam que o país deve superar o Kuwait, em breve, como maior produtor mundial per capita do combustível fóssil no mundo.

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O potencial de exploração de petróleo na região transformou o país em palco de negócios bilionários. Em outubro, a americana Chevron anunciou a compra da Hess Corp. por U$ 52 bilhões (R$ 256 ,2 bilhões em câmbio atual) para ter acesso à exploração de petróleo na Guiana e 30% do Bloco Stabroek, onde também operam a Exxon Mobil e a chinesa CNOOC.

Interesse profundo

O cenário econômico empolgante no outro lado da fronteira é apontado como um dos motivos para o regime de Nicolás Maduro aumentar a pressão sobre a soberania na região. Embora a disputa pelo território do Essequibo — onde fica a maior parte do mar territorial em que foi encontrado petróleo — remonte mais de um século de História e analistas apontem principalmente motivações internas para a realização do plebiscito, o interesse na nova área de exploração é uma das determinantes externas.

Dona das maiores reservas de petróleo do mundo, com potencial de produção comprovado de 300 bilhões de barris, a Venezuela já esteve entre os principais exportadores globais. As sucessivas crises políticas do país, estatização de empresas estrangeiras que atuavam na cadeia produtiva e sanções internacionais minaram a capacidade de produção, que caiu de 3 milhões de barris/dia para 750 mil. A PDVSA, principal empresa de petróleo do país, também acabou implicada em uma série de escândalos de corrupção nos últimos anos.

O governo de Nicolás Maduro tem denunciado que a operação petroleira na Guiana está ocorrendo em águas sob contestação de demarcação, o que levou Maduro a chamar o presidente da Guiana, Irfaan Ali, de "escravo" da Exxon Mobil. Após o referendo sobre a soberania do Essequibo, o presidente da Venezuela afirmou que concederá novas licenças de exploração de petróleo na região e ordenará a saída das empresas que já trabalham na área.

Embora não esteja claro como a Venezuela pretende a tomar a região da Guiana, Maduro estabeleceu um prazo de três meses para que as empresas que trabalham com o governo da Guiana se retirem da região.

A situação geopolítica entrou no radar de observadores internacionais, sobretudo nas empresas que já atuam no Bloco Stabroek. Em uma entrevista durante a COP28, o diretor-executivo da Exxon Mobil, Darren Woods, chegou a afirmar que a petroleira estava focada em produzir da maneira mais eficiente possível para ajudar o país na disputa fronteiriça com Caracas, mas negou uma intervenção política direta.

— Não tenho certeza de que a imprensa tenha captado a verdadeira intensidade da situação por lá, mas estamos vigilantes. O que podemos fazer é assegurar a ajuda ao governo da Guiana, produzindo os recursos de maneira eficiente — disse Woods.

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Analistas apontam que as incertezas provocadas pelo cenário de disputa podem prejudicar e mesmo criar novos custos para a operação das empresas que já atuam na região. Contudo, apontam para um sentido muito mais retórico do que prático e executável.

— [Se as ameaças de Maduro fossem] mais do que estardalhaço, o próprio governo dos EUA poderia limitar a capacidade da Chevron de operar na região — explicou o diretor para América Latina da Rystad Energy, Shreiner Parker, em entrevista à Bloomberg. — A própria Chevron pode escolher não operar em um país que invadiu a soberania de um vizinho.

História longa

O primeiro (e contestado) documento a definir a fronteira entre Venezuela e Guiana foi o Laudo Arbitral de Paris de 1899, quando o país anglófilo ainda era uma colônia do Reino Unido, que estabeleceu o Essequibo como parte do território britânico. Inicialmente, Caracas aceitou os limites impostos por ele, mas contestou o resultado décadas depois, alegando que a arbitragem, formada por dois árbitros britânicos, dois norte-americanos e um russo beneficiou o Reino Undio, acusando fraude.

Pouco antes da Guiana se tornar um país independente, Venezuela e Reino Unido assinaram um acordo em Genebra, em 1966, determinando que a fronteira entre os dois países seria definida por uma comissão mista entre os países. A comissão nunca foi formada, algo previsto nos termos do próprio acordo, que definia a ONU como palco para resolução da questão.

Com a saída dos ingleses e sem a formação da comissão mista, a questão ficou adormecida desde os anos 1980. Em 2013, já com Nicolás Maduro no poder, o governo venezuelano chegou a se referir à disputa territorial como uma "herança do colonialismo", originada em conflitos entre suas potências colonizadoras europeias, com o presidente defendendo uma resolução pacífica e diplomática.

Com a descoberta das grandes reservas de petróleo e gás natural, em 2015, o cálculo estratégico de Caracas começou a mudar. A disputa foi reavivada e levada até a ONU, onde, em 2018, o secretário-geral, António Guterres, decidiu por remeter o caso à Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia.

Pelo referendo de domingo, a Venezuela não deve reconhecer mais a competência da CIJ sobre a disputa de fronteira ou qualquer necessidade de negociação com a Guiana, uma vez que considerou o território como parte da Venezuela. Também decidiu que a disposição unilateral dos bens pela Guiana é ilegal. Como Maduro pretende tomar, de fato, o controle da região, sob administração da Guiana desde os anos 60, ainda é uma questão em aberto. (Com Bloomberg e AFP)