Internacional

Israelense é morto em ataque após ser confundido com palestino e põe em xeque política armamentista de Netanyahu

Antes de ser atingido por fogo amigo, Yuval Castelman atirou contra agressores e se identificou como judeu; Ministério de Segurança Nacional já recebeu 260 mil solicitações de porte de armas por civis

Agência O Globo - 06/12/2023
Israelense é morto em ataque após ser confundido com palestino e põe em xeque política armamentista de Netanyahu
Netanyahu

Na quinta-feira de manhã, Yuval Doron Castelman — um nome conhecido em Israel hoje — estava dirigindo em direção a Jerusalém para ir ao trabalho. De repente, dois palestinos saíram de um carro e abriram fogo contra os que esperavam em um ponto de ônibus, matando três pessoas. Castelman, um ex-policial com licença para portar armas, saiu correndo do veículo, aproximou-se dos agressores e atirou neles antes que fugissem.

Contexto: Ataque a tiros mata idosos e mulher em Jerusalém; Hamas reivindica atentado

Após ter reivindicado ataque, Hamas convoca 'escalada da resistência' contra Israel

As primeiras reportagens da mídia seguiram o ritmo habitual: alerta com o ataque, aumento do número de mortos, reivindicação de responsabilidade (pelo Hamas) e parabéns àqueles que "neutralizaram" (de acordo com o jargão oficial) os agressores.

No entanto, faltava uma peça: uma quarta morte que, a princípio, não se encaixava no quebra-cabeça e cuja explicação acabou se tornando, com o passar dos dias, um debate nacional que se estendeu ao primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu. E põe sobre a mesa os perigos do “gatilho fácil” (reação violenta ao menor sinal de provocação), da distribuição maciça de licenças de armas para civis e da presença crescente de colonos ultranacionalistas no exército. Neste caso, ansiosos para marcar o entalhe de um palestino morto na arma.

O quarto cadáver foi de Castelman. O "herói de Israel" — como Netanyahu o chama agora, depois de minimizar a tragédia — começou a ser baleado por um reservista do exército que não tinha visto o que havia acontecido e o confundiu com um dos agressores. Ainda ferido, Castelman interpretou muito bem a situação: levantou as mãos no meio da rua, tirou o casaco para mostrar que não estava usando um cinto de explosivos, gritou em hebraico "Não atire, sou judeu, sou israelense" e até jogou a carteira para que verificassem sua identidade. O soldado, no entanto, o matou, como mostra claramente um vídeo do momento. No dia seguinte, Castelman completaria 39 anos de idade.

Veja mais: Cisjordânia enfrenta pico de violência extremista, com mais de 120 palestinos mortos em um mês

Não é o fim que é excepcional. Vários ataques palestinos ao longo dos anos terminaram com a execução do agressor quando ele já quase não apresentava perigo, para o aplauso da direita e o silêncio dos outros. Como disse, em 2016, o extremista de direita Bezalel Smotrich, atual ministro das Finanças:

— Um terrorista que sai para fazer mal aos judeus não volta vivo. Ponto final.

Esse modus operandi geralmente gera pouco debate, exceto em casos paradigmáticos divulgados por organizações de direitos humanos, como um que muitos se lembram hoje em dia: Elor Azaria. Ele é o soldado israelense que, também em 2016, calmamente carregou seu rifle, aproximou-se e atirou na cabeça de um homem palestino que estava deitado, ferido e completamente imóvel, depois de esfaquear um soldado na cidade de Hebron, na Cisjordânia. Seu julgamento dividiu o país, com manifestações em massa, e transformou Azaria — que passou nove meses na prisão — em um mártir da direita.

A diferença nesse caso é que Castelman colocou sua vida em risco para impedir o ataque e acabou perdendo-a para um compatriota. A indignação da família cresce à medida que mais detalhes surgem.

— Meu filho foi morto. Não há outra definição para o que foi feito com ele — afirmou seu pai, Moshe, ao jornal Yediot Aharonot.

Sua irmã, Shaked, disse que ele foi "simplesmente executado", apesar de ter "agido da maneira mais profissional possível" devido ao seu histórico policial.

— Não há outra maneira de ver as coisas — acrescentou, antes de lamentar o fato de se encontrar em "uma guerra pela justiça" em vez de lidar com a dor.

Guerra: Israel cerca principal cidade do sul de Gaza e anuncia morte de cinco comandantes do Hamas no norte

Os dois soldados que dispararam os tiros estavam de costas para o ataque. Não viram a agressão e já se jogaram no chão. Quando se levantaram, começaram a atirar com armas longas naqueles que acreditavam ser os agressores. O autor dos disparos contra Castelman é Aviad Farija, um ultranacionalista religioso que se define como um "jovem das colinas", termo que designa os colonos mais ideológicos — e às vezes violentos –- da Cisjordânia.

A pressão fez com que a polícia militar o interrogasse e tirasse sua arma na segunda-feira, quatro dias após o incidente. Também levou à abertura de uma investigação que a corporação –- nas mãos de outro radical de extrema-direita, o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir –- compartilhará com o exército, que criticou o ocorrido.

'Fazendo um X’

Esta é a conversa que Farija, que atirou em Castelman, teve logo depois com um jornalista do canal de televisão nacional 14, favorito da direita:

— Dizem que você é um herói...

— Eu sei. Muito sortudo.

–- O que quer dizer com isso?

— Eu estava no momento certo e no lugar certo, mas todo soldado do exército israelense morre de vontade de fazer um X [marcar o entalhe de um homem morto].

— O senhor confirmou a morte?

— Sim, atiramos até que eles estivessem mortos.

Embora Castelman tivesse licença para portar uma pistola há muito tempo, sua morte reabriu o debate sobre o risco de acidentes ou disparos sem motivo decorrentes do armamento de um número cada vez maior de civis.

— Não devemos ter medo de falar sobre isso, de colocar a questão na mesa — disse o presidente Isaac Herzog na segunda-feira, durante uma visita à família para oferecer condolências e "pedir desculpas" em nome da nação.

O número de licenças de porte de arma para civis já vinha aumentando nos últimos anos, devido aos picos de violência — que tendem a impulsionar os pedidos — e às mudanças legais. Mas o ataque terrorista do Hamas no dia 7 de outubro — no qual 1,2 mil pessoas foram mortas ou sequestradas enquanto as forças de segurança demoravam horas para chegar — fez com que o número de licenças aumentasse.

Antecedentes: Israel revela documentos que mostram anos de preparação do Hamas para ataque de 7 de outubro

Ben Gvir, que já havia flexibilizado as regras, estendeu potencialmente as permissões a outros 400 mil israelenses e prometeu dar 10 mil armas de fogo (4 mil delas, armas longas) aos colonos. Seu ministério já recebeu 260 mil solicitações, das quais 30 mil foram aprovadas e 50 mil estão nos estágios finais. O diretor geral da pasta, Elazar Ben Harash, e o diretor do Departamento de Armas, Israel Avishar, pediram demissão recentemente. O último porque as nomeações escolhidas a dedo por Ben Gvir facilitaram a emissão de licenças em seus escritórios que, em sua opinião, deveriam ser revisadas. Em 30 de outubro, o ministro foi a um posto de gasolina em Jerusalém, onde um palestino havia acabado de esfaquear um policial. Um jornalista lhe perguntou por que ele ainda não havia visitado os feridos de 7 de outubro.

— Estou ocupado distribuindo armas — respondeu ele.

O que mais esquentou a atmosfera foi a controversa reação inicial de Netanyahu no sábado, em uma coletiva de imprensa.

— É a vida — disse ele depois de defender a "continuidade da política" que seu ministro está promovendo, porque ter civis armados podem ter um "preço", mas "salvam vidas".

O desgosto com a expressão "é a vida" — "Era difícil escolher palavras mais ultrajantes, desdenhosas e ofensivas", escreveu Yoav Limor, comentarista do jornal Israel Hayom — forçou-o a fazer uma retificação sem convicção. O premier telefonou para o pai da vítima no dia seguinte e tornou isso público em uma declaração na qual descreveu Yuval como "um herói de Israel" que "salvou muitas vidas" e cuja morte será "investigada a fundo".

Leia também: ONU é criticada por silêncio frente aos relatos de violência sexual cometidos pelo Hamas no dia 7 de outubro

O caso não está ligado à flexibilização das normas de abertura de fogo nos últimos anos, porque elas não permitem que ninguém seja alvejado com os braços levantados, explicou por telefone Roy Yellin, diretor do Departamento de Divulgação da ONG israelense de direitos humanos Btselem. Algumas mudanças dizem respeito à zonas de guerra (o que não inclui Jerusalém Oriental) e outras ao poder de atirar — o que "se tornou a norma nas ruas", critica ele — se o soldado sentir que sua vida está em perigo porque pedras ou um coquetel molotov foram atirados contra ele.

Para Yellin, trata-se mais da mensagem que prevalece após anos de declarações de políticos de direita de que não querem que os agressores sejam presos.

— Muitos no governo atual apoiaram Azaria na época — argumentou ele.

Isso, Yellin apontou, "cruza" com o perfil ideológico de Farija:

— Se ele fosse um soldado mais profissional e atento às regras, não teria feito isso. Mas, ele era um soldado ideológico, que acredita que a vida de um árabe vale menos do que a de um judeu.