Esportes

Na reta final do Campeonato Brasileiro surge a dúvida: a pratica da "mala branca" é legal?

Penúltima rodada tem dez jogos e nove com aspectos importantes mas, em sete, o confronto será entre um clube com aspiração esportiva e outro sem meta para lutar

Agência O Globo - 02/12/2023
Na reta final do Campeonato Brasileiro surge a dúvida: a pratica da 'mala branca' é legal?
CBF - Foto: Lucas Figueiredo/CBF

A penúltima rodada do Brasileirão, que começa hoje, terá nove dos dez jogos com aspectos decisivos para título, G4 ou rebaixamento. Sete deles envolvem um clube que ainda briga por algo nesta edição, contra outro que não tem nada, ou muito pouco a lutar, que já não têm mais grandes aspirações. Fiéis do campeonato, estas equipes podem, esportivamente, favorecer ou prejudicar rivais, a depender do seu desempenho.

Não é de hoje — e nem por acaso — que nesta etapa entra em campo a polêmica das “malas” como estratégias para influenciar a motivação de clubes sem aspirações em partidas que podem valer taças, vagas em torneios para a próxima temporada e salvação do rebaixamento. Conhecidas no meio do futebol, as práticas envolvem ganhos financeiros para que uma equipe facilite a vitória do adversário (“mala preta”, termo que deveria estar em desuso uma vez que tem conotação racista) ou vença e beneficie indiretamente quem ofereceu a “mala branca”.

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Não há suspeitas ou indícios que algo do tipo esteja ocorrendo na Série A do Brasileirão, mas após o fim da última rodada da Série B, semana passada, acusações contra uma equipe tomaram conta do noticiário. O que há, de fato, é exemplo de jogos em que a prática mais comum, a "mala branca", poderia aparecer. Na luta contra o rebaixamento, por exemplo, o já rebaixado América-MG enfrenta o Bahia, que no Z4, precisa da vitória para não correr risco de cair já nesta rodada. O Santos, ainda sem assegurar permanência, visita o Athletico-PR, que já tem vaga assegurada na Sul-Americana, sem chances de ir à Libertadores. Vasco e Cruzeiro, que também correm riscos de cair, torcem para que os desinteressados América-MG e Athletico vençam suas partidas. Mas oferecer dinheiro para isso, aos clubes ou jogadores, é uma prática legal?

Entregar o jogo, prática condenada moralmente, está sujeita à Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023, artigos 198 a 200) que prevê pena de 2 a 6 anos de reclusão, além de multa, configurando corrupção ativa esportiva. Já o pagamento de "incentivo" para desempenhar papel que já seria natural (vencer a partida) não é considerado crime fora da esfera esportiva. É, inclusive, aceito por agentes do meio.

— "Mala preta" é crime, é como se pagasse ao goleiro para tomar frango ou ao zagueiro para fazer pênalti. Em tese não fariam e estão provocando uma situação para alterar ou falsear um resultado — explica o advogado criminalista Rafael Valentini, instrutor do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP e autor de artigos sobre o tema penal desportivo. — Já a "mala branca", a meu ver, é uma questão moral. Não uma ação ilícita, não há relevância criminal.

Mas há discordâncias nos tribunais do esporte. Paulo Schmidt, presidente do Comitê de Integridade da Federação Paulista de Futebol e responsável pela Divisão de Prevenção à Manipulação de Competições, diz que, após 12 anos atuando como procurador-geral do STJD do Futebol (2004-2016), "não tem a menor dúvida" que a prática é como um doping.

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— Esse incentivo, dinheiro obscuro, não importa o nome que se dê, é absolutamente vedado pela legislação desportiva nacional e internacional. Não pode, é fraude esportiva, vantagem indevida, corrupção e manipulação, tanto pra quem oferece, como pra quem recebe — opina Schmidt, que também entende que há implicações criminais. — Entendo que há possibilidade de enquadramento na lei também. Desequilíbrio financeiro externo para interferir em resultado de um evento é fraude de qualquer forma, corrupção ativa e passiva, vantagem patrimonial indevida, etc..

Ele afirma que existe "um sem número de dispositivos" no Código Brasileiro de Justiça Desportiva, Código Disciplinar da FIFA, Código do Movimento Olímpico sobre prevenção e combate à manipulação de competições.

— É fácil provar? Claro que não. Em regra só mediante confissão e ou quebra de sigilo fiscal, telemático etc. Mas é uma postura que desafia os princípios mais comezinhos de honestidade — opina Schmidt, que também reprova equipes que entram em campo para cumprir tabela e com pouco interesse em vencer: — Tem relação com motivação e pode ser em tese menos questionável. Porém vale lembrar que atuar de modo prejudicial a própria equipe pode disfarçar uma manipulação através de ações propositais para derrota ou circunstâncias que beneficiem apostas esportivas.

"Mala branca? Sempre teve"

O goleiro Felipe (ex-Flamengo e Corinthians), que este ano defendeu o Santa Rosa, do Pará, lembra com riqueza de detalhes da reta final do Brasileiro de 2009, que tem semelhanças na tabela com a atual edição do torneio. Ele estava no gol do Corinthians, quando não se mexeu na cobrança de pênalti de Léo Moura. O Flamengo venceu por 2 a 0 e depois, frente a um também desmotivado Grêmio, conquistou o campeonato (o Inter, rival do Grêmio, também poderia ser campeão).

À época, ele foi acusado de receber dinheiro para facilitar a vitória rubro-negra, o que atrapalharia a luta do São Paulo, outro candidato ao título. O caso também tem gancho com a atual edição do Brasileirão: o Palmeiras praticamente garante o título brasileiro com uma vitória contra o Fluminense amanhã, em São Paulo. Nas redes sociais, torcedores do Flu pedem que o time não faça lá muita força, já que em caso de vitória tricolor, os rivais Flamengo e Botafogo podem voltar a sonhar com a taça.

Felipe nega que isso tenha ocorrido há 14 anos. Diz que foi implicância da "imprensa paulista" porque naquela rodada o Flamengo assumiu a liderança.

— O que se fala do pênalti é que eu deixei. Cara, goleiro não gosta de tomar gol nem em treino. E o que induziu a galera achar isso é que após o pênalti eu bato palma. Foi uma ironia porque o pênalti não aconteceu — relembra, ao ressaltar que os times que concorriam com o Flamengo perderam na rodada. — Se tivesse pego o pênalti, o jogo acabaria 1 a 0. Agora, se estivesse 0 a 0, poderiam deduzir qualquer coisa. Até eu, se tivesse 0 a 0, não teria aquela atitude. Eu mesmo vendo depois pensaria que o goleiro deixou.

Felipe garante que não recebeu nada neste episódio nem em nenhum outro na carreira.

— Não dá para jogar para perder. E meus parentes que vão ao estádio me ver? — pondera o goleiro. — Agora, "mala branca" sempre teve, normalmente para time que está lá embaixo, que já caiu e pode bagunçar o campeonato. Nunca vivi situação assim. Mas já ouvi, claro. E acho válido porque é para ganhar. Pensa, eu gostaria de receber se a bonificação fosse maior que meu salário.

O goleiro diz que "ninguém nunca vai assumir que tem, mas a gente sabe que rola". Segundo ele, pode não passar por diretoria, mas circula entre jogadores.

— Às vezes até o cara fala "meu time pode atrapalhar ali" ou "tomara que alguém ligue para a gente". Normal, final de ano, Natal mais gordo. Veja o caso do Vila Nova e do ABC.

Acusações na Série B

Na última rodada da Série B, na semana passada, o Vila Nova nunca tinha estado tão perto do acesso e dependia de uma vitória para subir. Enfrentaria ABC, já rebaixado à Série C. Resultado: o ABC derrotou o Vila Nova por 3 a 2.

Hugo Jorge Bravo, presidente do Vila Nova e quem denunciou a Máfia das Apostas, disse que os rivais receberam dinheiro de terceiros. Falou, no entanto, que não é contra a prática.

— É a maior idiotice da bola punir a mala branca. Não vejo isso como diferencial que fez a gente perder o jogo. Perdemos porque os jogadores borraram nas calças. Tenho certeza que minha premiação pelo acesso era cinco vezes maior do que foi oferecido aos jogadores do ABC. E o que me deixa indignado é ver atleta só jogando por dinheiro. Se tivessem jogado pelo clube, o clube não tinha caído. A entrega neste jogo foi muito superior ao que foi visto no campeonato.

Hugo diz que "pouco importa quem pagou" e o que lhe revolta é que Thonny Anderson, denunciado na Máfia das Apostas, "ainda está jogando bola" (foi punido pelo Pleno do Superior Tribunal de Justiça Desportiva e pagou multa de R$ 40 mil). Ele fez dois gols e participou diretamente do primeiro (Rafael Donato marcou contra). Na comemoração do terceiro gol, Thonny gritou: "Não vai subir ninguém".

Bira Marques, presidente do ABC, garante que seu time não recebeu bonificação. Fala, inclusive, que qualquer incentivo pago por outro clube é contra a lei. Contou que foi procurado por dois presidentes de clubes preocupados com o desmanche que ele já promovia. Mas, segundo ele, nada lhe foi oferecido.

— O ABC já estava rebaixado e ninguém nunca me ajudou em nada e não estou aqui para ajudar ninguém. Disse apenas que meu time iria jogar normalmente.

Ele diz, no entanto, que não pode afirmar nem negar que os jogadores, de forma individual, tenham recebido algo. E que não acha que o time tenha jogado muito melhor nesta partida em questão.

— No início da competição, tivemos jogos melhores que esse daí. O rebaixamento aconteceu porque na maior parte do torneio faltou futebol, qualidade, competência e compromisso — disse o dirigente, que completa: — Nesse meio do futebol existe de tudo, existe mala branca e o contrário também. Veja as apostas envolvendo atletas. Alguém chega nos atletas, eles não vivem em vitrine isolados. Mas não sei de nada. E quem tem provas que as apresente para punir os envolvidos.

Via redes sociais, o lateral-direito Gedeilson e o meia Matheus Anjos, do ABC, disseram que não receberam nada e queriam "saber onde estava os R$ 200 mil". Segundo o senador Jorge Kajuru (PSB), esse foi o valor que cada atleta do clube potiguar recebeu.

Procurada, a CBF respondeu, em nota, que "zela pela idoneidade e integridade das competições. Quanto a relatos de eventuais 'incentivos por vitória', que a imprensa do mundo todo costuma publicar ano após ano, a CBF, no que diz respeito às suas competições, encaminha esses relatos ao STJD, podendo levá-los também à Comissão de Ética da entidade e a órgãos públicos competentes".