Internacional
Voluntários dormem ao relento em Times Square para chamar atenção para pessoas em situação de rua em Nova York
População dependente de abrigos públicos e privados para passar a noites em Nova York cresceu quase 46% no período de um ano
Curiosos que passavam pela região mais famosa de Nova York, a Times Square, na noite do último dia 16, foram surpreendidos pelo clima de acampamento na esquina da Broadway com a rua W46th. Ali se reuniram 400 voluntários com cobertores, sacos de dormir, camas improvisadas e até cachorrinhos para passar ao relento uma fria noite de outono e sentir na pele o que é ser uma pessoa em situação de rua durante a iniciativa “Sleep Out” (dormir fora, em tradução livre).
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Segundo Shakeema North, diretora da Covenant House, que luta pelos direitos de habitação para jovens de 16 a 21 anos em situação de vulnerabilidade, o objetivo da iniciativa da ONG é “ajudar a entender que esse é um grande problema, sobre o qual precisamos colocar mais foco”.
Por isso o local escolhido foi a Times Square: a ideia era contrastar a ostentação da área, onde todo artista almeja ter a imagem projetada um dia, com a realidade daqueles que ocupam o mesmo espaço não por escolha, mas por necessidade. Mais de 4 milhões de jovens já passaram por algum nível de falta de moradia em todo os EUA, relatou Shakeema, para quem “fornecer abrigo para esse grupo demográfico é uma grande necessidade”.
— A indigência é um grande problema que precisa ser resolvido — diz Shakeema, cuja instituição atende mais de 1,5 mil jovens por ano.
Só em Nova York, o número de pessoas vivendo nas ruas ou que se abrigam no metrô para suportar o rigoroso inverno (dezembro a março no Hemisfério Norte) atingiu nos últimos anos níveis antes experimentados só durante a Grande Depressão de 1930, segundo a organização Coalizão para os Sem Moradia de Nova York.
Se, em setembro de 1983, o total de pessoas sem habitação em Nova York era de 4.963, em setembro de 2022, 60.252 pessoas dependiam de abrigos públicos e privados para passar a noite, segundo o Departamento de Serviços para Desabrigados e Administração de Recursos Humanos de Nova York. Em setembro deste ano, esse número cresceu quase 46%, chegando a 87.907 — incluindo 31.510 crianças e adolescentes dependentes de instituições como a Covenant House para passar a noite.
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O problema também atinge estudantes. Segundo o relatório anual da organização Advocates for Children of New York (Defensores das Crianças de Nova York, em tradução livre), mais de 119 mil menores — ou cerca de um em cada nove matriculados nas escolas públicas — sofreram algum nível de falta de moradia no ano letivo de 2022-2023, um aumento de 14% em relação a 2021-2022.
Uma das razões para o crescimento é o valor dos aluguéis da cidade, cuja média de preços para apartamentos de um quarto é a mais alta dos Estados Unidos. Segundo a Zumper, plataforma de aluguéis, houve um crescimento de 5,3% nos preços em 2023. Além disso, há superlotação dos abrigos antes destinados a atender indigentes, que também passaram a ser usados para receber migrantes enviados de ônibus para a cidade por governadores do Sul dos EUA.
Desumanização
Apesar do clima alegre entre as centenas de pessoas que se voluntariaram para passar a noite sob as luzes da Times Square, todos os participantes levam a causa muito a sério.
Antes de se acomodarem nos sacos de dormir espalhados pelo chão da região famosa, houve um momento de emoção, em que cada um deles segurou uma vela simbolizando a intenção de trazer esperança àqueles que se encontram em situação de indigência.
Allie Geller foi uma das voluntárias que ajudaram a Covenant House a atrair atenção para a ação na Times Square e a arrecadar mais US$ 1,5 milhão por meio de doações. A gerente de 33 anos participou da experiência movida pelo incômodo de ver os moradores de rua serem repetidamente ignorados.
— Quando encontramos essas pessoas no metrô ou na rua, não as olhamos nos olhos, não as tratamos com humanidade — afirmou, completando: — É muito importante mudar isso.
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O engenheiro eletrônico Keenan Rogers, de 26 anos, também participou da iniciativa por entender que a indigência resulta da grande diferença salarial entre os moradores de Nova York, “além do grande afluxo de pessoas”, que causa uma demanda que acaba por elevar os aluguéis.
Antes da “Sleep Out”, a Covenant House arrecadava dinheiro com jantares e leilões, relembra o consultor financeiro John Byron, de 58 anos, que já fez parte do conselho da ONG. Mas, ao perceber que essa forma tradicional não gerava “nenhum burburinho”, surgiu a ideia de dormir fora para chamar a atenção para o desconforto e a dificuldade enfrentados por aqueles que tentam viver nas ruas da cidade.
— Tudo começou com apenas um grupo de CEOs e membros do conselho. E realmente chamou muito a atenção — relatou Byron, que participa do “Sleep Out” há 12 anos. — As pessoas perguntavam “quem são essas pessoas dormindo no meio da rua?”. Éramos 40, e agora somos milhares em dezenas de cidades nos EUA e em seis países.
Antes de o dia amanhecer em Nova York, onde os primeiros raios de sol costumam aparecer por volta das 7h nesta época do ano, os organizadores começaram a servir o café. Aqueles que conseguiram permanecer ao relento na rua fria chegaram ao fim da experiência com a sensação de ter contribuído para aumentar a consciência sobre um drama vivido por um número cada vez maior de pessoas na cidade.
— É realmente poderoso — disse Bill Bedrossian, presidente e CEO da Covenant House ao final da atividade. — Vemos muitos jovens aqui em Nova York perambulando pelas ruas à noite, caminhando para se aquecerem diariamente.
Abrigos superlotados
Em abril de 2022, chegou a Nova York a primeira “frota” com imigrantes enviados por autoridades do Sul a Nova York, principalmente por Greg Abbott, governador republicano do Texas, em meio a uma disputa partidária com o prefeito de Nova York, o democrata Eric Adams. Desde então, mais de 130,6 mil migrantes desembarcaram na cidade, segundo a prefeitura.
Em outubro de 2022, quando a população dependente do sistema de abrigos da cidade chegou a 61 mil, Adams declarou estado de emergência. No início, os imigrantes que desembarcavam na rodoviária de Manhattan eram encaminhados a algum dos 175 abrigos emergenciais da cidade, mas logo a prefeitura precisou encaminhá-los a quartos alugados de hotéis que ficaram vazios durante a pandemia. Ao todo, a cidade abriu mais de 213 locais extras, incluindo 17 centros de ajuda humanitária, para requerentes de asilo até o último mês de setembro.
A maioria dos imigrantes que chegam à cidade são latino-americanos fugindo de regimes autoritários ou da guerra do tráfico de drogas. Ao chegar aos EUA, porém, muitos descobrem que o “sonho americano” pode ser, na verdade, uma realidade nada fácil.
O processo de obtenção da autorização para trabalhar legalmente nos Estados Unidos, por exemplo, pode levar até um ano. Como, nesse ínterim, essas famílias não conseguem arcar sozinhas com suas necessidades básicas de alimentos, transporte e moradia, acabam caindo na indigência e alimentando a realidade de crescimento do número de pessoas nas ruas de Nova York.
A arquiteta Anjali Muthi, de 45 anos, que trouxe os dois filhos gêmeos para passar a noite na Times Square, diz que, quando pensa nos jovens que vivem nas ruas, recorda de seus próprios filhos.
— Eles têm 13 anos. Ao fazê-los dormir na rua, estou ajudando a desenvolverem a consciência de que podem fazer a diferença neste mundo — apontou Muthi, completando: — E é isso o que importa.
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