Internacional

O luto mais doído: conheça os termos usados por judeus e palestinos para nomear pais e mães que perderam seus filhos na guerra

Shakul, em hebraico, e thaakil, em árabe, são exclusivos, respectivamente, do hebraico e do árabe, para se referir ao horror de ser “órfão de seu filho ou filha"

Agência O Globo - 05/11/2023
O luto mais doído: conheça os termos usados por judeus e palestinos para nomear pais e mães que perderam seus filhos na guerra

Costuma-se dizer que não existe uma palavra específica para descrever um pai ou uma mãe que perdem o filho, como há para órfão ou viúvo. É uma dor tão antinatural e imensa que seria impossível traduzi-la. Mas o atual conflito no Oriente Médio, infelizmente, sublinha as exceções à regra: em pelo menos duas línguas, justamente o hebraico e o árabe, há sim termos específicos para expressar drama tão ancestral quanto as guerras no Oriente Médio.

Preconceito: Antissemitismo e islamofobia crescem em meio a guerra entre Israel e Hamas

Ao vivo: Acompanhe as notícias da guerra entre Israel e Hamas em tempo real

A morte de uma criança é descrita como luto tão intenso que não se pode prever a reação de quem fica. Na semana passada, o israelense-irlandês Thomas Hand, com a voz embargada e os olhos encharcados de lágrimas, disse ter "sentido alívio" quando soube da morte de sua filha Emily, de 8 anos, assassinada no dia 7 de outubro, assim que os terroristas do Hamas entraram no kibutz de Beeri, um dos mais próximos da Faixa de Gaza.

— O Exército me informou dias após o ataque: "Encontramos a Emily. Está morta". E minha reação naquele momento foi de alívio. Sabia que rovavelmente ela estava morta ou em Gaza. E quando você vê como o Hamas está tratando os israelenses em Gaza, creio que isso seria pior para ela do que a morte — disse Hand. Thomas Hand passou a ser um shakul , em tradução livre do hebraico um "pai órfão”.

A milhares de quilômetros da zona de conflito, em Chicago, Hanaan Shaheen, uma palestina de 32 anos nascida na Cisjordânia e que migrou há alguns anos para os Estados Unidos com o marido, Oday, se tornou, por sua vez, thaakil , em tradução livre em árabe "órfã de uma criança", após o assassinato de Wadea, de 6 anos, por ódio religioso, uma semana após o início da guerra.

Wadea foi cruelmente esfaqueado 26 vezes por Joseph Czuba, 71 anos, dono da casa que a família alugava em Plainfield, Chicago. Inflamado com as notícias do Oriente Médio, Czuba entrou na casa dos seus inquilinos e atacou a mãe e a criança, gritando “Morte aos muçulmanos!” . A mãe conseguiu se recuperar de alguns ferimentos, mas o filho não sobreviveu. No funeral da criança, Oday, o pai de Wadea, um pacifista, alertou: “Este conflito não será resolvido com balas”.

Da mesma forma, Catherine Russell, diretora da agência do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), gritou: “Todas as partes devem parar a violência e prevenir as graves violações cometidas contra as crianças!”. Russell frisa o horror das 3.400 crianças palestinas mortas até o momento em Gaza e 30 em Israel, de acordo com, respectivamente, o Ministério de Saúde da Faixa de Gaza, controlado pelo Hamas, e o governo israelense. Após três semanas de combates, milhares de famílias palestinas e israelenses tornaram-se, assim, tragicamente, thaakil e shakulim.

A origem bíblica da palavra para a perda de um filho

Os teólogos judeus lembram que a palavra shakul é de origem bíblica. “Seus significados são múltiplos nos textos sagrados”, explicou o rabino argentino Abraham Skorka, pesquisador da Universidade de Georgetown, em Washington .

— Shakul denota tudo, desde um animal que perde seu filhote até qualquer pessoa cujo ente querido morreu. No entanto, a Academia da Língua Hebraica, com sede em Jerusalém, estabeleceu que o uso moderno do termo estava restrito à situação do enlutado cujo filho ou outro membro da família morreu em guerras ou situações semelhantes, como um ataque terrorista — explicou Skorka.

Como rabino que acompanhou pais que perderam seus filhos em diversas ocasiões, como os que morreram no ataque terrorista à Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), em 1994, Skorka relembrou uma tradição judaica: rasgar as roupas do pai enlutado .

— Assim como na Bíblia Jacó rasga sua túnica quando lhe é dito que seu filho José morreu, muitos pais judeus hoje também realizam o mesmo ritual como sinal do coração dilacerado para sempre pela morte de um filho — acrescenta o rabino argentino.

Fuga: Brasileiros ficam fora da lista de autorizados a saírem de Gaza pelo quarto dia consecutivo

Leia mais: Chanceler de Israel diz a ministro que brasileiros devem sair de Gaza até quarta

No caso do Islã, embora exista a palavra thaaki, seu uso não é tão frequente. “Precisamente não se quer aprofundar a ferida de um thaakil, lembrando-lhe de sua condição”, explicou o sheik Salim Delgado, do Centro Islâmico da República Argentina (CIRA) .

Confrontado com mais de 3.000 casos de crianças mortas na Faixa de Gaza devido aos bombardeios israelenses, de acordo com o Ministério da Saúde da Faixa de Gaza, o sheik justificou a necessidade de perdão e misericórdia, e recordou a atitude do profeta Maomé quando conquistou Meca no início do ano 630.

— Quando Maomé tomou a Cidade Santa sem derramar uma gota de sangue, perguntou àqueles que massacraram milhares de muçulmanos o que achavam que ele deveria fazer com eles. E, diante do inimigo derrotado, o próprio profeta respondeu: 'Não há censura contra ti. Continue o seu caminho, porque você é livre " — lembrou Salim Delgado.

Concluiu então, referindo-se ao conflito atual:

— A vingança já não serve. Alguém tem que cortar esta cadeia de injustiça.

O que dizem os linguistas

Os linguistas também investigam, em sentido geral, por que uma palavra existe em uma língu e não tem equivalente em outra.

— Todas as línguas encontram uma maneira de dizer o que os falantes precisam e querem dizer. As palavras existem para nomear uma realidade — explicou o linguista Pablo Cavallero, secretário-geral da Academia Argentina de Letras. Assim, por exemplo, na língua inuit dos esquimós, há dezenas de palavras para nomear os diferentes tipos de neve, como em espanhol existem várias para nomear chuva (garoa, faísca, chuva, aguaceiro, aguaceiro, dilúvio. ..) e é muito útil diferenciar uma palavra da outra.

Cenário de guerra: 'Havia corpos ensanguentados por toda parte', conta médico de ONG sobre bombardeio que atingiu comboio de ambulâncias em Gaza

Cavallero lembrou ainda que em sua origem a palavra órfão significa apenas 'ser privado' de alguma coisa. Uma cidade pode ficar órfã de pessoas e pode-se dizer que um pai é “órfão” de filhos.

— Nas línguas greco-romanas parecemos rejeitar liminarmente a ideia, e é por isso que seu uso não é comum com esse significado. A mesma raiz indo-europeia, porém, passou para a língua finlandesa, que tem o adjetivo 'orbo' , para um pai que perdeu seus filho, por exemplo — explicou Cavallero.

Em seu livro "Living with our dead" ("Vivendo com nossos mortos", em tradução livre), a rabina francesa Delphine Horvilleur , do Movimento Liberal Judaico da França (MJLF), arrisca que a ausência de um termo específico nas línguas latinas é "como se, ao evitar nomeá-lo, a língua acreditada poderia descartar a experiência, como se por superstição fizéssemos questão de não falar sobre isso para não correr o risco de provocá-la.”

Ela explica que o termo hebraico shakul vem do reino vegetal e designa o ramo da videira cujo fruto já foi colhido.

— Um pai enlutado é um galho cortado do fruto ou um cacho de onde foram colhidas as uvas. A seiva circula pelo galho, mas não tem para onde ir, e o botão seca porque um pedaço de sua vida o abandonou — diz.