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Princesa da Espanha presta juramento pela primeira vez a Parlamento formado por metade de mulheres

Herdeira ao trono espanhol assumirá o compromisso de defender a Constituição diante de um governo com paridade de gênero inédita, símbolo da transformação do país quanto a agenda feminina

Agência O Globo - 31/10/2023
Princesa da Espanha presta juramento pela primeira vez a Parlamento formado por metade de mulheres

Quando a princesa da Espanha e herdeira ao trono, Leonor, prestar juramento nesta terça-feira para "manter e defender" a Constituição de 1978 — como fez o agora rei Felipe VI há 37 anos atrás —, ela não estará sozinha, nem será a única mulher na tribuna principal e no Parlamento. A monarca, que completa 18 anos, estará cercada por sua família, a rainha Letizia e a infanta Sofía, e sua imagem ao lado da presidente do Congresso, a socialista Francina Armengol, ficará gravada na história. Cinco dos nove membros da Mesa da Câmara são mulheres, e 44% dos parlamentares (deputados e senadores) também são mulheres.

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O atual governo espanhol também tem paridade de gênero. Esta é a grande diferença, muito mais do que simbólica, do retrato tirado por seu pai em 30 de janeiro de 1986, quando os homens detinham 94% dos assentos do Congresso.

Apenas dois dos 350 membros do Congresso que estavam presentes no juramento do então príncipe Felipe ainda estão ativos e estarão na Câmara nesta terça-feira. Um deles é o ministro da Agricultura em exercício, Luis Planas, que na época, com 33 anos, era deputado socialista por Córdoba. O outro é Ignacio Gil Lázaro, do partido de extrema direita Vox, que na época estava na Aliança Popular, o embrião do conservador Partido Popular.

O juramento do agora rei foi realizado no final da primeira legislatura do Partido Socialista Operário Espanhol (Psoe), chefiado pelo então premier Felipe González, sete meses após a entrada da Espanha na Comissão Europeia e um dia antes da convocação do controverso referendo sobre a adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte, ao contrário do que havia sido prometido.

— Às vezes, esses atos são vistos como protocolares, mas são atos constitucionais de reforço do chefe de Estado e da estabilidade institucional. Esse juramento expressa o compromisso de respeitar e garantir o respeito às leis e aos cidadãos e, no caso atual, reflete a mudança mais importante ocorrida na sociedade espanhola desde 1986, que é o papel da mulher na Espanha — afirma o ministro Luis Planas.

O ministra socialista ressalta que naquele Congresso quase não havia deputadas, uma na Mesa e nenhuma no governo de González. No gabinete de Pedro Sánchez, também socialista, 12 dos 22 ministérios são chefiados por mulheres, e três são vice-presidentes. Planas não acredita que seja uma coincidência o fato de ambos os governos serem socialistas e se vangloria:

— O Psoe é o único partido que persiste no documento constitucional e sempre apoiou as instituições e a monarquia.

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Durante o debate constitucional, os socialistas defenderam apaixonadamente a República e, na votação sobre o modelo de Estado, quando chegou a hora de votar a favor ou contra a monarquia parlamentar, eles se abstiveram.

Adolfo Suárez Illana, filho do ex-presidente Suárez, então na oposição, aponta para essa evolução básica do Psoe quando Juan Carlos I sancionou a Constituição em 27 de dezembro de 1978 por meio de uma conversa entre seu pai e o então monarca naquele dia:

— O Psoe recebeu a assinatura de Dom Juan Carlos com frieza e, ao sair, o rei contou ao meu pai e lhe disse: 'Isso vai melhorar, não se preocupe, meu objetivo não era tanto essa posse, mas meu compromisso de que a de seus netos possa ser celebrada e isso será cumprido'.

Isso acontecerá nesta terça-feira, embora o rei emérito não esteja presente na câmara para vê-la, porque o próprio ex-chefe de Estado não acha conveniente. Ele estará presente na comemoração privada e familiar no palácio de El Pardo, em Madri.

Miquel Roca, então porta-voz da Convergência e União — uma federação de partidos nacionalistas de direita da Catalunha, liderada pelo ex-presidente catalão Jordi Pujol, que estava presente naquele dia há 37 anos na galeria de convidados —, foi também um dos relatores da Constituição e tem uma memória vívida daquele dia.

— Diz muito sobre a solvência democrática do nosso sistema o fato de a princesa Leonor se comprometer com o cumprimento da Constituição em um ato de submissão normal, mas com a grandeza da mais alta representação do país do ponto de vista institucional aos valores democráticos e à soberania popular, para que se possa ver que a instituição mais importante do Estado não está à margem.

Ele acrescentou que é simbólico que a princesa seja uma mulher e que "não há preservação masculina ou de gênero em uma democracia que é igual para todos".

Anna Balletbó, membro do Partido dos Socialistas da Catalunha (PSC) há 20 anos e, na época, cética quanto à durabilidade da monarquia incipiente, hoje enfatiza a importância de que a herdeira agora é uma mulher:

— Devemos ficar felizes por termos uma rainha na Espanha. Ela será a terceira depois das rainhas Juana e Isabel II. Um sinal dos novos tempos, também na Europa. Leonor é um grande trunfo, olhando para o futuro, para modernizar e consolidar a monarquia parlamentar e representa a geração Z, que hoje constitui 18% da população.

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Teresa Cunillera, também do PSC, destaca duas imagens. A primeira é a das poucas mulheres que ela viu naquela Câmara há 37 anos. Eram 23 no Congresso (5,9%). Atualmente, há 154 deputadas (44%) e 113 senadoras (43,2%). A outra é sobre a importância dada ao evento em si:

— Era tudo novo e não planejado, naquele Congresso nem sequer tínhamos escritórios, e Peces Barba [ex-presidente do Congresso da Espanha], que era muito monarquista, queria dar a ele uma sensação de atmosfera e solenidade.

A ideia da submissão ao Parlamento é endossada pelo ex-presidente socialista Felipe González, que na época teve suas tensões com o socialista Gregorio Peces Barba, sobre quem deveria ocupar o centro do evento:

— É um ato de continuidade da democracia espanhola, como votamos e a autoproclamamos em 1978; o soberano é o Parlamento, que é quem produz o juramento, algo que não acontece em outras monarquias europeias ao nosso redor.

O deputado do Vox, Ignacio Gil Lázaro, comentou sua emoção:

— Para mim, reviver esse evento depois de tantos anos significa uma oportunidade pessoal de reafirmar meu compromisso de lealdade à Coroa como símbolo da unidade e permanência da Espanha, conforme estabelecido na Constituição.