Internacional
Guterres: O salto em frente
O secretário-geral disse o que a ONU deve a milhões de palestinos, e a si mesma. A reação expõe o estado a que chegou Israel.
António Guterres fez uma declaração histórica no Conselho de Segurança da ONU, na terça, 24 de outubro. Não porque a verdade do que disse seja radical mas porque se tornou radical dizer aquela verdade. Guterres resgatou-a com clareza e coragem. Foi tão longe quanto possível e mais além: subiu a fasquia (sarrafo) do possível naquele lugar, e a partir dele nas organizações e governos. Desde 7 de outubro é uma nova era, e desde terça é já outro momento. Guterres surpreendeu quem não esperaria tanto do secretário-geral.
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Incluindo o Estado de Israel, que lhe declarou guerra através do embaixador lá, dizendo-se “chocado” com o discurso, exigindo a demissão de Guterres e anunciando que vai negar vistos à ONU, porque “chegou o momento de lhes dar uma lição”.
Eis o estado a que chegou Israel. A supremacia de quem se acha acima da lei humanitária e internacional. De quem se acha acima das Nações Unidas. E pensa que pode tudo, porque tem podido muito, com ajuda dos EUA e capitulação da União Europeia (UE).
Em 20 de outubro, Guterres foi a Rafah dizer que do outro lado estavam dois milhões de pessoas trancadas sem água nem comida. No dia 24, disse as palavras que a ONU devia a essas pessoas, e a si mesma. O discurso de terça faz dele o líder contra a barbárie. Sobretudo quando na véspera a UE, herdeira de guetos, cercos e massacres, foi incapaz até de apelar a um cessar-fogo humanitário.
Não falhar de novo é apoiar Guterres agora. António Costa não poderia não o fazer, e o fez. No momento em que escrevo aguardamos o resto.
Testemunhei e fiz críticas à ONU em duas décadas a acompanhar Israel/Palestina no terreno. É todo um debate, a longa dependência da assistência humanitária, como isso perpetua o status quo. Mas desprendemo-nos desse status quo desde 7 de outubro, e haverá tempo para um novo debate. O urgente agora é que 2,3 milhões continuam sob bombas, com fome, sede, milhares no chão de hospitais em colapso, operados sem anestesia. 6.500 mortos, 2 mil dos quais crianças.
Tantos que há escavadoras a enterrarem corpos em valas comuns porque falta tudo, e há o risco de epidemias. Valas comuns no século XXI perante os nossos olhos: se acompanharmos os bravíssimos repórteres locais (depois de tantos já terem morrido), e inúmeros telemóveis (celulares) carregados com sol, compartilhados nas redes. Enquanto a imprensa do mundo está à espera de entrar. Nunca precisamos tanto de jornalismo ali. Não é uma catástrofe natural. É a violência de um Estado sobre um povo sem Estado.
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Israel bombardeia escolas, hospitais, a mais antiga igreja de Gaza. Ordena que um milhão fuja para Sul, depois ataca o Sul. Pelo meio, a família de W. fica soterrada, salva-se porque vizinhos arriscam tudo para os desenterrarem. W., esse amigo que há anos foi torturado pelo Hamas. Quando consegue sinal, conta-me como as pessoas se salvam umas às outras, compartilham comida, água, internet. Horas para arranjar água potável ou pão. Tendas e gente ao relento sob bombas.
Mais de dois milhões reféns em Gaza. E quase três milhões na Cisjordânia, agora também bombardeada com drones, além dos ataques dos colonos. Centenas de mortos e feridos lá, na hora em que escrevo. Ao falar por eles, Guterres falou por nós: que é urgente um cessar-fogo, que Israel viola a lei humanitária internacional, que é um “sofrimento épico” o dos palestinos, que há uma “ocupação sufocante” há 56 anos, que a violência do Hamas não aconteceu no vazio. Dizer a verdade junto dessa outra verdade que é o 7 de outubro ter sido horrível não é justificar o horror, e Guterres deixou isso claro. É lembrar que há outras verdades.
Também me comunico com amigos em Israel, e nunca senti a atmosfera tão cerrada, mesmo na esquerda que combate a ocupação. Israel recolheu-se na dor dos seus 1.400 mortos, na angústia dos seus 220 reféns, da orgia de sangue agora reproduzida em múltiplos vídeos que as autoridades distribuem à imprensa, enquanto centenas de milhares de soldados aguardam a iminente invasão terrestre, milhares de civis têm agora licença para se armarem, e as bombas caem em Gaza.
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Não em nosso nome, declaram milhares de judeus no exterior, sobretudo nos EUA. Que não só dizem o que Guterres disse sobre o cessar-fogo, a ocupação, as violações de Israel, como vão além. Dizem a Israel e a esse novo presidente de Israel que se tornou Joe Biden: a nossa dor não é a vossa arma.
Como de outra forma fez uma das reféns que o Hamas libertou, a espantosa Yocheved Lifshitz, de 85 anos. Sofreu no rapto, conta-o. Também conta que foi bem tratada em cativeiro. Não tenho espaço aqui para o que isto pede. Mas a sequência de imagens em que ela estende a mão para se despedir dos captores, e as mãos se apertam, é assombrosa.
Que cada um dos 220 reféns do Hamas se salve. Têm Israel, Biden, UE e parceiros a lutar por isso, e ainda bem. Guterres também o pediu. Mas até ele falar agora, quem com poder falara pelos milhões de palestinos reféns de Israel há décadas?
Há um par de dias Obama criticou o corte de água, comida e energia, a desumanização dos palestinos que endurece gerações. Ajudou a atenuar o belicismo de Biden. O próprio Biden parece tê-lo atenuado.
Mas foi Guterres quem deu o salto em frente. Será mais difícil proibir bandeiras palestinas, reprimir manifestações, expor um preconceito em curso. Que a Europa se pergunte: se fossem cristãos, judeus, brancos, já apelaria ao cessar-fogo? Teríamos chegado ao gueto de Gaza? Nunca mais é nunca mais para toda a gente. Zero tolerância para antissemitismo vai a par com zero tolerância para qualquer racismo.
E no seu salto à frente, Guterres toca essa nova geração que está agora mesmo a sair à rua pelo mundo contra o horror em Gaza. Em vigília frente ao Parlamento português, na língua do secretário-geral da ONU, no instante mesmo em que termino este texto.
*Alexandra Lucas Coelho é jornalista e escritora portuguesa
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