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Eleições na Argentina: Milei tenta atrair Bullrich em meio à disputa pelo seu eleitorado com Massa

Peronista acena para ala radical do Juntos pela Mudança, coalizão de Bullrich, e ultradireitista convida terceira colocada para compor governo

Agência O Globo - 25/10/2023
Eleições na Argentina: Milei tenta atrair Bullrich em meio à disputa pelo seu eleitorado com Massa
Javier Milei

Após o resultado do primeiro turno na Argentina no último domingo (22), uma coisa é certa: o peronismo não morreu. Contra todas as probabilidades, o atual ministro da Economia, Sergio Massa, ficou em primeiro na corrida com 36,6% dos votos — freando o avanço da ultradireita de Javier Milei, que obteve 30%. Os dois se enfrentarão em um segundo turno no dia 19 de novembro.

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No centro da disputa está o valioso espólio da terceira colocada, Patricia Bullrich, representante da aliança conservadora Juntos pela Mudança, que elegeu o ex-presidente Mauricio Macri em 2015. Seus 6,2 milhões de votos, 23,8% do total, podem definir o futuro da Casa Rosada. Cientes disso, tanto Massa quanto Milei já estão se movimentando para atrair seus eleitores. Mas Bullrich já negou qualquer apoio ao candidato governista — o que não significa que parte dos votos que recebeu migrem para ele.

— O populismo empobreceu o país e não sou eu quem vai felicitar o regresso ao poder de alguém que fez parte do pior governo da história Argentina — declarou Bullrich em discurso logo após o resultado do primeiro turno.

Milei, por outro lado, indicou na segunda-feira que Bullrich poderia ser convidada a assumir o Ministério da Segurança, que ocupou no governo Macri, caso ele vença a disputa.

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Mas os eleitores de Bullrich estão longe de formar um bloco homogêneo, um efeito dos diferentes partidos que compõem a aliança conservadora. O núcleo duro e majoritário da coalização vem do Pro, legenda fundada por Macri em 2005 como uma plataforma para governar a cidade de Buenos Aires e, posteriormente, a Presidência. Seus membros se consideram republicanos e liberais, mas o que realmente os une é o ódio comum ao peronismo, especialmente à sua versão kirchnerista.

O segundo grupo vem da União Cívica Radical (UCR), que surgiu em 1891 como o primeiro partido de massa da Argentina. A partir da década de 1940, a política nacional foi estruturada pela relação dialética entre os radicais e o peronismo. A proeminência dos radicais atingiu seu auge em 1983, com a transição democrática, e foi extinta após Fernando de la Rúa, outro presidente da legenda, deixar o poder em 2001 durante a crise do "corralito". Embora a UCR nunca tenha perdido controle territorial, em nível nacional foi reduzida a um apêndice do Pro na aliança Juntos pela Mudança. Seus eleitores são antiperonistas, mas sem fanatismo. Massa foi atrás deles no domingo à noite.

— Quero falar com esses milhares de radicais que compartilham conosco os valores democráticos, como a educação pública e a independência dos poderes. Farei todos os esforços nos próximos 30 dias para ganhar sua confiança — disse o peronista.

Milei, por outro lado, não abre mão de manifestar seu desprezo pelos radicais. Após toda uma campanha de insultos ao grupo, o ultradireitista os acusou de trair Bullrich na segunda-feira.

— Os votos de Massa aumentaram e os de Bullrich diminuíram. Aí fica claro quem foi que traiu [a aliança] — disparou Milei.

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Para Sergio Morresi, professor da Universidade Nacional do Litoral, Milei se dá o luxo de desprezar esta parte do eleitorado por acreditar que seus votos já foram para Massa. Na visão do ultradireitista, os 6,2 milhões que se mantiveram com Bullrich representam o núcleo duro da coalizão e, portanto, mais próximos a ele. O sentimento anti-peronista desta fatia é mais forte do que a retórica anti-sistema de Milei, avalia o professor.

— A questão é se é realmente verdade que os radicais já votaram em Massa, porque Milei não tem pessoas estudando esse fenômeno com dados empíricos. Por enquanto, não passa de uma impressão — explica Morresi.

Eduardo Fidanza, diretor da consultoria Poliarquía, concorda que os votos do Juntos pela Mudança serão divididos entre Milei e Massa, mas adverte que é muito cedo para saber em que proporção.

— Tanto os radicais quanto o setor moderado do Pro não estariam dispostos a votar em Milei, mas ele, sem dúvida, ficará com uma parte, a dos eleitores mais radicais de Macri e de todos aqueles que abominam o kirchnerismo, que são muitos — avalia Fidanza, acrescentando que a migração para Massa "será mais secreta, como acontece com os votos envergonhados".

De qualquer forma, se Milei conseguir tirar os 6,2 milhões de votos de Bullrich, terá o suficiente para vencer o segundo turno. Por enquanto, isso não parece possível. O ultradireirista poderá completar a porcentagem necessária para a vitória com parte dos 1,7 milhão de votos obtidos — 6,7% do total — pelo quarto colocado, o governador de Córdoba, Juan Schiaretti, um peronista profundamente anti-kirchnerista que chegou a flertar com a possibilidade de se juntar ao Juntos pela Mudança. Os 700 mil votos (2,7%) da esquerda tradicional, que no primeiro turno foram para a candidata Myriam Bregman, completam a equação.

Milei enfrentará também o desafio de suavizar sua imagem. Durante a campanha, ele disparou sem piedade contra o peronismo, mas também contra o que chamou indiscriminadamente de "casta política", acusando políticos de todos os partidos de viverem de roubo. Até mesmo sua principal bandeira, a dolarização da economia para acabar com a inflação, já não desperta o mesmo entusiasmo entre os economistas que o acompanham. Milei não está mais falando em aprovar a venda de órgãos e crianças, mas segue defendendo a legalização do porte de armas.

Outro ponto sensível será sua relação com o Papa Francisco, com quem trocou farpas ao longo da campanha. Em setembro, o ultradireitista acusou o Pontífice de acobertar "ditaduras comunistas sangrentas e assassinas", o que mobilizou protestos na Argentina. O candidato também sugeriu que poderia romper as relações com o Vaticano caso seja eleito, iniciativa considerada impopular em um país composto por uma ampla maioria católica.

O caminho também não será fácil para Massa, à frente de uma gestão econômica em frangalhos. A inflação está disparando e o peso perde cada vez mais valor. Os argentinos com algum poder de compra estão recorrendo ao dólar, que se tornou mais escasso na economia argentina. Nesta semana, Massa recebeu ajuda da China, que forneceu US$ 6,5 bilhões para o governo, o que poderá dar um fôlego ao candidato-ministro até o segundo turno. Diante de um cenário sem perspectiva de melhora no curto prazo, o resultado eleitoral no domingo parece um milagre (Com El País e La Nación).