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Eleição na Argentina: migração de votos de Bullrich para Massa mostra que peronismo ressurgiu das cinzas

Centro-direita pode transferir ainda mais votos para o ministro da Economia que vai enfrentar o radical de direita Javier Milei no segundo turno

Agência O Globo - 24/10/2023

O escritor Jorge Luis Borges, um antiperonista ferrenho, costumava dizer que os peronistas não são bons nem ruins, são incorrigíveis. Há décadas, o movimento fundado nos anos 1940 pelo general Juan Domingo Perón domina a política argentina — seja no governo, na oposição ou mesmo nos 18 anos de exílio do político, entre 1955 e 1973. E, como ficou claro no primeiro turno da eleição presidencial deste ano, nunca pode ser subestimado.

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Com uma crise econômica galopante, cerca de 140% de inflação anual e previsão de retração do PIB de 2,5% para este ano, o candidato peronista, que comanda o Ministério da Economia desde agosto de 2022, ampliou em 3,2 milhões de votos seu apoio entre as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso) de agosto e o primeiro turno, realizado no último domingo. Já seu rival no segundo turno, o candidato da direita radical, deputado Javier Milei, conquistou apenas 700 mil novos votos no mesmo período.

A derrotada Patricia Bullrich, que disputou a Presidência como candidata da aliança opositora Juntos pela Mudança, perdeu 400 mil votos. Muitos desses eleitores, apontam pesquisas que circulam em todo o país, migraram dela para Massa. Algo que nem em seus piores pesadelos sonhou o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), líder — agora questionado — da centro-direita.

A migração de votos de Bullrich para Massa poderá ser ainda mais expressiva no segundo turno, apontam analistas e confirmam eleitores da ex-ministra. Como se explica essa escolha pelo peronismo por parte de argentinos que em outros momentos ou até recentemente, nas Paso, votaram pela aliança opositora, que considera peronistas e kirchneristas uma “máfia criminosa”? As respostas que surgem em conversas informais são variadas, e as razões também.

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Na visão do analista Hugo Haime, estrategista de campanhas especializado em peronismo, a migração de votos de Bullrich a Massa se explica única e exclusivamente pelo medo a Milei. Em pesquisas que realizou antes do primeiro turno, Haime constatou que 20% dos seguidores de Bullrich já diziam que, num eventual segundo turno entre Massa e Milei, votariam pelo peronista.

— Hoje, com os erros que Milei está cometendo, acho que esses 20% podem crescer — acrescenta Haime.

'Vou votar em Massa, tampando o nariz', diz bancária

Para Fernando Valle, advogado de classe média portenho, o resultado do primeiro turno mostrou que os argentinos querem seguir com um governo peronista. Então, "que o tenham e percebam o desastre que isso vai significar".

— O próximo governo vai ter em mãos uma bomba-relógio que Massa ajudou a construir. Acho justo que essa bomba exploda nas mãos dele. Se Milei ganhar, a bomba vai explodir num governo de oposição e, como já aconteceu antes, o peronismo vai voltar e governar outros 20 anos. Já vimos esse filme em 2001, 2002 e 2003 — diz Valle.

O advogado foi eleitor de Fernando de la Rúa, da aliança entre a União Cívica Radical e a Frente País Solidário (Frepaso), em 1999, e diz não querer repetir o mesmo erro:

— De la Rúa foi um desastre e tivemos 20 anos de kirchnerismo depois. Se Milei fracassar, teremos 20 anos de "massismo" — diz.

A bancária Marcela Fernández, que trabalha num banco estatal, está entre as que gostaria que o peronismo perdesse, mas teme que, nesse cenário, quem vai perder mesmo é ela.

— Votei em Bullrich porque queria uma mudança moderada, que me deixasse dormir tranquila. Com Milei, temo perder meu emprego pois ele quer reduzir o Estado. Meu emprego depende do Estado. Vou votar em Massa, tampando o nariz — explica Fernández.

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Como muitos outros, a bancária não vai votar em Massa por convicção, e sim por pânico a Milei. Outros dizem que votarão em branco, o que acabará beneficiando o candidato que saiu na frente.

No peronismo, a semântica importa

Desde que assumiu a pasta da Economia e disse a seus colaboradores que seu objetivo era ser presidente — o que já tentou em 2015, em guerra com o kirchnerismo, e ficou em terceiro lugar —, Massa recompôs vínculos e reunificou a tropa. Porque assim funciona o peronismo. Quando aparece um novo líder — no caso de Massa, ainda dependente da vice-presidente Cristina Kirchner —, as diferenças internas se discutem dentro do movimento, mas a imagem para o restante do mundo é de união. Não é à toa que o nome da aliança eleitoral e de governo mudou este ano, deixou de ser Frente de Todos, virou União pela Pátria. Sim, a semântica importa.

Os adversários do peronismo costumam dizer que seus integrantes são ótimos "gerenciadores de poder", mas administradores ruins. Os indicadores econômicos atuais da Argentina e os resultados do primeiro turno confirmam esta definição.

O peronismo ressurge das cinzas quando menos se espera. O movimento já demonstrou essa capacidade em outros momentos da História, e voltou, nesta eleição, a deixar claro que sua extinção, defendida por Milei, Bullrich e muitos outros opositores, está longe de acontecer.

Quando a então presidente Cristina Kirchner deixou o poder, em 2015, muitos imaginaram que era o começo do fim do kirchnerismo, desde 2003 a facção mais poderosa dentro do peronismo, determinante, inclusive para a recuperação eleitoral de Massa em várias províncias do país. O exemplo mais impressionante é a província de Buenos Aires, onde vivem 38% dos eleitores do país. Lá, o candidato peronista cresceu 47,89% no primeiro turno, em relação às primárias. Quase dobrou os votos. E dos 3,2 milhões de votos que Massa conquistou em menos de dois meses, 1,1 milhão são eleitores da Grande Buenos Aires, que apresenta indicadores de pobreza, em alguns casos, superiores a 50%, e onde o o kirchnerimo ainda pisa forte. Nessa mesma região, o chamado “Conurbano bonaerense”, Bullrich perdeu 128 mil votos, indicou relatório do Centro de Pesquisa e Ação Social (CIAS, na sigla em espanhol).

Na província de Buenos Aires, a aliança de Massa com o kirchnerismo e com o movimento de jovens kirchneristas La Cámpora — peça-chave no comando de sua campanha —, foi crucial. Em 2015, os peronistas perderam a eleição para governador da província, vencida pela aliança Juntos pela Mudança, mas em 2019 a recuperaram, e acabam de reeleger seu governador, o kirchnerista Axel Kicillof.

O fato de ser um movimento doutrinário e não ideológico, como enfatizam seus integrantes, dá ao peronismo uma flexibilidade que permite praticamente tudo. Na campanha deste ano, Massa aposta em alianças com todos os interessados, no impacto das medidas que já anunciou e ainda anunciará como ministro, no medo dos argentinos de perderem benefícios, serviços cada vez mais precários de saúde e educação, e seus próprios empregos.

Uma das medidas do governo antes do primeiro turno, segundo revelou o colunista Carlos Pagni, do La Nación, foi enviar cartas oficiais a imigrantes estrangeiros residentes lembrando da obrigação de votar no país. Massa está atento a cada detalhe, com a habilidade que caracteriza os peronistas, e que se torna ainda mais potente quando eles estão no poder.