Internacional

Preservar o espaço da paz: o trabalho do mundo durante a guerra contra o Hamas

Historiador Yuval Noah Harari fala da dor de israelenses e palestinos e defende que comunidade internacional mantenha a empatia e a visão dos dois lados, enquanto durarem o conflito e as feridas abertas para israelenses e palestinos

Agência O Globo - 17/10/2023

Aviv Kutz, de 54 anos, morador do kibutz Kfar Aza, é amigo de infância de uma amigo meu muito próximo. Aviv e a mulher, Livnat, de 49 anos, e os filhos Roten, de 19, Yonatan, de 17 e Yiftach, de 15, moraram em Kfar Aza por anos. Ainda que a família Ktuz tenha passado por vários ataques com foguetes e morteiros do Hamas ao seu kibutz, pais e filhos continuaram esperando pela paz.

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Todo ano, a família organizava um festival de pipas, com o objetivo de criar um pequeno espaço pacífico na zona de guerra. Pipas coloridas, algumas com mensagens de paz, eram empinadas perto da cerca da fronteira com Gaza. A irmã de Livnat, Adi Levy Salma, que participou do festival nos anos anteriores disse que “a ideia é empinar as pipas perto da cerca para mostrar a Gaza que só queremos viver em paz”.

O festival de pipas deste ano estava programado para o sábado, 7 de outubro. “Festival de pipas 2023”, dizia o convite, “vamos nos encontrar no campo de futebol às 16h para enfeitar o céu”. Algumas horas antes do festival começar, os terroristas do Hamas invadiram e ocuparam o kibutz. Os terroristas foram de casa em casa torturando, matando e sequestrando sistematicamente dezenas de moradores do kibutz. Todos os cinco membros da família Kutz foram mortos.

Atrocidades como estas confundem a mente. Por que os seres humanos fazem coisas como estas? O que o Hamas esperava alcançar? O objetivo do ataque do Hamas não era capturar e manter território. O Hamas não tem a capacidade militar de controlar o kibutz por muito tempo diante do Exército israelense.

Três coisas devem ser apontadas, para entender os objetivos do Hamas. Primeiro, o Hamas focou amplamente neste ataque em matar e sequestrar civis, ao invés de soldados. Em segundo lugar, os terroristas torturaram e executaram adultos, crianças e até bebês no modo mais tenebroso que poderiam imaginar. E, em terceiro lugar, ao invés de tentar esconder as atrocidades, o Hamas garantiu que elas fossem divulgadas, até filmando algumas eles mesmos e compartilhando os vídeos chocantes nas redes sociais.

Definição de terrorismo

Essa é a própria definição de terrorismo, e já vimos coisas similares antes com o Estado Islâmico (EI). Diferente da guerra convencional que usualmente busca conquistar território ou degradar capacidades militares, o terrorismo é uma forma de guerra psicológica, que visa a aterrorizar. Ao matar centenas de pessoas de formas brutais e tornando isso público, organizações como o Hamas e o EI buscam aterrorizar milhões — israelenses, palestinos e pessoas do mundo.

O Hamas é diferente de outras organizações palestinas como a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), e não deve ser equiparada a todo o povo palestino. Desde sua fundação, o Hamas recusou-se veementemente a reconhecer o direito de existência de Israel e fez tudo o que estava ao seu alcance para arruinar todas as oportunidades de paz entre israelenses e palestinos, e entre Israel e o mundo árabe.

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O pano de fundo imediato do atual ciclo de violência são os tratados de paz assinados entre Israel e países do Golfo Pérsico, e o esperado tratado de paz entre issraelenses e sauditas. Havia a expetativa de que esse acordo não apenas normalizasse as relações entre Israel e boa parte do mundo árabe, mas também que, de algum modo, aliviasse o sofrimento de milhões de palestinos vivendo sob ocupação israelense, e que reiniciasse o processo de paz entre os dois lados do conflito.

Nada alarma mais o Hamas do que a possibilidade de paz. É por isso que ele lançou este ataque — e é por isso que matou a família Kutz e mais de mil outros civis israelenses. O que o Hamas fez é um um crime contra a Humanidade no sentido mais profundo do termo. Um crime contra a Humanidade não é apenas sobre matar seres humanos. É sobre destruir nossa confiança na Humanidade. Quando você testemunha coisas como pais sendo torturados e executados na frente dos filhos, ou crianças pequenas brutalmente assassinadas, você pede toda a confiança nos seres humanos. E corre o risco de perder sua humanidade também.

Os crimes do Hamas não podem ser justificados pela conduta passada de Israel. Dois erros não fazem um acerto. Há muito por criticar Israel por manter milhões de palestinos por décadas sob ocupação, e por abandonar, nos últimos anos, qualquer tentativa séria de paz.

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Fanatismo religioso

No entanto, o assassinato da família Kutz e muitas outras atrocidades cometidas pelo Hamas, não tinham o objetivo de reiniciar o processo de paz ou tem alguma probabilidade de liberarem um único palestino da ocupação israelense. Em vez disso, a guerra lançada pelo Hamas impõe imenso sofrimento a milhões de palestinos. Impulsionado pelo seu fanatismo religioso, o Hamas simplesmente não parece se importar com o sofrimento humano – israelense ou palestino.

Diferente da laica OLP, muitos dos líderes e ativistas do Hamas parecem só se importar com suas fantasias de vida paradisíaca após a morte. Eles estão dispostos a entregar este mundo às chamas e a destruir as nossas almas no processo, para que as suas próprias almas possam supostamente desfrutar da felicidade eterna num outro mundo. Nós temos que vencer essa guerra de almas.

Em sua guerra contra o Hamas, Israel tem o dever de defender seu território e seus cidadãos, mas deve também defender sua humanidade. Nossa guerra é com o Hamas, não com o povo palestino. Os civis palestinos merecem desfrutar de paz e prosperidade em sua terra, e até no meio do conflito, seus direitos humanos básicos devem ser reconhecidos pelos dois lados. Isso se refere não apenas a Israel, mas também ao Egito, que partilha a fronteira com a Faixa de Gaza, que fechou parcialmente.

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Já o Hamas e seus apoiadores devem ser excomungados pela Humanidade. Não só Israel, mas toda a comunidade humana deveria colocar o Hamas completamente fora dos seus limites, assim como fez antes com o EI. Os cidadãos de Israel não podem viver em lugares como Kfar Aza, com o Hamas do outro lado da cerca, assim como iraquianos e sírios não podiam viver como o EI à sua porta.

Dezenas de milhares de israelenses já fugiram das áreas de fronteira, e não podem voltar para suas casas antes que a ameaça a suas vidas seja removida. Em um nível mais profundo, as vidas de todos os seres humanos são desvalorizadas e ameaçadas enquanto se permita que organizações como o Hamas e o Estado Islâmico existam.

Os objetivos da guerra em Gaza devem ser claros. Ao fim da guerra, o Hamas deve estar totalmente desarmado e a Faixa de Gaza deve ser desmilitarizada, para que os civis palestinos possam viver vidas dignas no território, e os civis israelenses possam viver sem medo ao lado da Faixa de Gaza.

Até que esses objetivos sejam atingidos, a luta para manter a nossa humanidade vai ser difícil. Muitos israelenses são psicologicamente incapazes nesse momento de ter empatia com os palestinos. A mente está cheia até a borda com nossa própria dor, e não resta espaço nem para reconhecer a dor dos outros.Muitas das pessoas que tentaram manter esse espaço — como a família Kutz — estão mortas ou profundamente traumatizadas. Muitos palestinos estão em uma situação semelhante — suas mentes também estão tão cheias de dor que não podem ver a nossa.

Mas os que estão de fora e não imersos na dor devem fazer um esforço para ter empatia com todos os seres humanos que sofrem, ao invés de preguiçosamente verem apenas uma parte da terrível realidade. É o trabalho dos que estão de fora ajudar a manter o espaço para a paz. Nós depositamos esse espaço pacífico com vocês, porque não podemos mantê-lo no momento. Cuidem bem dele para nós, para que um dia, quando a dor começar a sarar, tanto israelenses como palestinos possam habitar este espaço.

*Yuval Noah Harari é historiador, filósofo e autor de "Sapiens", "Homo Deus" e "Sapiens: Edição em quadrinhos".