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'Armadilha de Gaza': invasão por terra pode ser 'tiro no pé' para Israel e ameaça para todo Oriente Médio

Estratégia do Hamas parece ser arrastar os soldados israelenses para um atoleiro, como fez o Hezbollah, no sul do Líbano, de 1985 a 2000.

Agência O Globo - 12/10/2023
'Armadilha de Gaza': invasão por terra pode ser 'tiro no pé' para Israel e ameaça para todo Oriente Médio

Quatro dias após o ataque sem precedentes do Hamas, Israel parece prestes a ordenar uma invasão por terra, em larga escala, na Faixa de Gaza. Com pelo menos 1,2 mortos em Israel, e 2,7 mil feridos na mais mortal incursão ao território israelense da História, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, está sob enorme pressão para mandar tropas ao enclave. Ele já respondeu com bombardeios aéreos que mataram pelo menos 1,1 mil palestinos em Gaza.

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Antes de ir mais fundo, Israel deve considerar que pode estar caminhando para uma armadilha. O Hamas sabia que o ataque de sábado deixaria Netanyahu com poucas opções além da invasão por terra, e sabe ainda que a tecnologia e a superioridade militar das Forças de Defesa de Israel oferecem pouca vantagem nas ruas da Cidade de Gaza, em Jabalia — o maior campo de refugiados do território — ou pelo seu labirinto de túneis subterrâneos. Gaza, com cerca de 363 km² e uma população de mais de 2 milhões de habitantes, é um dos lugares mais populosos do mundo.

Parece que o Hamas pretende arrastar os soldados israelenses para um atoleiro, como fez o Hezbollah, no sul do Líbano, de 1985 a 2000. Após anos de combates, os israelenses enfrentaram uma retirada humilhante e caótica, deixando para trás um Hezbollah fortalecido e ameaçador, em sua fronteira norte.

Porque o Hamas iria querer atrair as Forças Armadas israelenses para um campo de batalha sangrento? O Hamas é o poder incontestável em Gaza, embora eleições não ocorram desde 2006. Nem a Autoridade Nacional Palestina (ANP), nem o seu principal partido político, o Fatah, ou a comunidade de negócios, a sociedade civil ou líderes de clãs podem desafiar o grupo efetivamente.

Guerra de exaustão

O Hamas se tornou cada vez mais forte, a cada conflito com Israel. Apesar do bloqueio de Israel e da permanente vigilância, o grupo parece ter sido capaz de construir e comprar mais foguetes, melhorando constantemente seu alcance e precisão, e de oferecer treinamento ofensivo a seus combatentes, além de desenvolver uma rede de inteligência sofisticada, com alcance suficiente para lançar ataques simultâneos a 22 locais em Israel. Eles com certeza acreditam que podem derrotar as forças inimigas em seu próprio terreno, em uma guerra de exaustão.

Também na Cisjordânia, o grupo pretende expandir sua credibilidade política, principalmente se os avanços de Israel empacarem. Muitos palestinos da Cisjordânia já consideram a ANP, que administra partes do território ocupado, como corrupta, fragilizada e incapaz de realizar as aspirações de seu povo. A incursão israelense em Jenin, em julho, aprofundou a percepção de que a ANP não consegue proteger os palestinos, nem oferecer uma visão de futuro mais esperançosa.

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Se Israel invadir Gaza, o Hamas poderá conquistar o apoio popular para desafiar a ANP na Cisjordânia e, potencialmente, assumir o lugar de única liderança do povo palestino. O grupo também pode contar com seu aliado na região, o Hezbollah. No dia seguinte do atentado no sul de Israel, o grupo libanês começou a lançar ataques pela fronteira norte israelense. O Hezbollah poderá também querer tirar vantagem, caso Israel tenha que enfrentar o Hamas em Gaza e na Cisjordânia.

Tabuleiro do Oriente Médio

Apesar das bárbaras atrocidades que cometeu, o Hamas pode ter conseguido redefinir o alinhamento político no Oriente Médio, ao golpear a perspectiva de conversas diplomáticas entre israelenses e sauditas. Mas se a situação em Gaza escalar para uma longa batalha campal, poderá inclusive minar os chamados Acordos de Abraão, que estabeleceram acordos entre Israel e os Emirados Árabes e Bahrein, e interromper o movimento de crescente normalização nas relações entre árabes e israelenses. A ANP não conseguiu impedir os acordos, mas o Hamas ainda pode desfazê-los.

Israel, claro, pode contar com o apoio americano. Na próxima semana, suas forças armadas podem destruir boa parte da infraestrutura do Hamas. No entanto, operacionalmente, o grupo dificultou sua liberdade de ação ao manter pelo menos 150 reféns. Se uma guerra por terra se arrastar, Israel poderá ter ganhos no campo de batalha, mas é quase certo que não destruirá a ideologia do Hamas ou os anseios não realizados dos palestinos por um Estado.

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Para evitar a armadilha em Gaza, Israel precisa dos aliados árabes no terreno e na região. Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito e Jordânia enxergam o Irã, o Hamas, o Hezbollah, os rebeldes Houthi no Iemên e a Irmandade Muçulmana como uma ameaça estratégica coletiva. Para ganhar o apoio dos principais líderes regionais, o governo israelense terá que oferecer robustas concessões de segurança e inteligência, no caso de uma guerra mais ampla com o Irã, e delinear um horizonte claro e significativo para um Estado Palestino pós-Abbas (Mahmoud Abbas, presidente da ANP) e pós-Hamas.

No entanto, Netanyahu enfrenta uma crise de credibilidade tanto em casa, como com os vizinhos árabes. Só um verdadeiro governo de união poderá conseguir conter a ameaça do Hamas com diplomacia na região. E se tiver sucesso, poderá custar o cargo ao primeiro-ministro.

Os próximos dias vão ser sangrentos e difíceis para israelenses e palestinos. O Hamas pode ter montado uma armadilha se levar Israel a uma invasão de Gaza. Antes de tomar a decisão e entrar, o governo israelense precisa de uma estratégia para sair. E um plano para o dia seguinte. Um erro de cálculo poderá detonar uma crise no Oriente Médio por gerações.