Internacional

Há 50 anos, 'fiasco total' marcou a entrega do Nobel da Paz

Prêmio foi concedido ao americano Henry Kissinger e ao, na época, norte-vietnamita Le Duc Tho pela assinatura do Acordo de Paz de Paris, que não estabelecia o armistício no Vietnã, mas somente uma trégua

Agência O Globo - 07/10/2023
Há 50 anos, 'fiasco total' marcou a entrega do Nobel da Paz
Foto: (crédito: Anastacia/Unsplash)

Um vencedor que recusou o prêmio, outro que não viajou por medo de protestos, dois membros do comitê que renunciaram: o Nobel da Paz atribuído há 50 anos ao americano Henry Kissinger e ao vietnamita Le Duc Tho continua sendo um dos mais polêmicos.

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— Um fiasco total. Foi o pior prêmio em toda a história do Nobel da Paz — afirmou Asle Sveen, historiador norueguês especialista no prêmio Nobel, à AFP.

Em 16 de outubro de 1973, o Comitê Norueguês do Nobel anunciou que o prêmio foi concedido em conjunto ao conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos, que no mês anterior havia sido promovido a secretário de Estado, e ao membro da comunista e líder da delegação norte-vietnamita "por terem negociado conjuntamente um cessar-fogo no Vietnã em 1973", explicou Sveen.

Em 27 de janeiro daquele ano, ambos firmaram o Acordo de Paz de Paris, que estabeleceu o armistício no Vietnã e a retirada das tropas americanas, pressionadas por um forte movimento contra a guerra.

— Não era um acordo de paz, mas sim uma trégua que se rompeu rapidamente — disse o historiador.

Foi, sobretudo, uma oportunidade para os EUA retirarem suas tropas da enrascada vietnamita durante um forte movimento contra a guerra, que estremeceu e abalou o país americano.

O conflito, que ficou conhecido como "Guerra Americana" para o povo vietnamita, teria fim apenas no dia 30 de abril de 1975 com a queda de Saigon, capital do Vietnã do Sul, apoiada pelos EUA, para a então força do Norte, aliada da extinta URSS.

A decisão do prêmio imediatamente gerou polêmica e foi sucedida pela renúncia de dois dos cinco membros do comitê, algo sem precedentes.

Nos Estados Unidos, o jornal The New York Times chegou a publicar um editorial sobre o "Prêmio Nobel da Guerra", enquanto professores da Universidade de Harvard escreveram ao Parlamento norueguês criticando uma nomeação que foi "mais do que uma pessoa com senso normal de justiça pode suportar". O cantor americano Tom Lehrer também ironizou o ato, considerando que "a sátira política se tornou obsoleta".

Hoje centenário, Kissinger é acusado de provocar a propagação das guerras do Vietnã e Camboja, e de ordenar os bombardeios massivos sobre Hanói para pressionar as negociações. O então funcionário de alto escalão dos EUA também apoiou o golpe de Estado do general Augusto Pinochet contra o presidente democraticamente eleito Salvador Allende, no Chile.

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Menos conhecido, Le Duc Tho também se apresentava como uma figura linha dura e organizou a invasão do Vietnã do Sul dois anos mais tarde. Ele foi o primeiro — e até então o único — a rejeitar um Nobel da Paz.

— Quando o Acordo de Paris sobre o Vietnã for respeitado, as armas forem silenciadas e a paz for verdadeiramente restaurada no Vietnã do Sul, considerarei aceitar o prêmio — disse ele em um telegrama.

Temendo ser recebido com protestos, Kissinger convocou uma reunião da Otan para não precisar receber o prêmio em Oslo. Após a queda de Saigon, no Vietnã do Sul, para as tropas do Vietnã do Norte em 1975, o americano tentou devolver o prêmio ao comitê, que negou.

De acordo com Olav Njølstad, atual diretor da premiação, os documentos desclassificados após cinco décadas de confidencialidade sugerem que o comitê esperava dar impulso ao Acordo de Paris para promover uma paz duradoura. Também considerava que a restauração da paz no Vietnã teria reduzido as tensões entre Ocidente e Oriente e colocado fim à Guerra Fria.

No entanto, em uma conversa com a AFP, Olav Njølstad reconheceu dias atrás que foi um erro.

— Tendo a pensar que foi uma má decisão. Em geral, não é uma boa ideia conceder prêmios a pessoas que lideraram uma guerra — disse o diretor.

Ausentes a contragosto

Desde 1901, seis ganhadores do Nobel da Paz não puderam comparecer à cerimônia de entrega dos prêmios em Oslo.

Em 1936, o jornalista e pacifista alemão Carl Von Ossietzky tinha sido enviado a um campo de concentração nazista. Em 1975, o físico e dissidente soviético Andrei Sakharov foi representado por sua esposa, Elena Bonner.

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Oito anos depois, o sindicalista polonês Lech Walesa declinou participar da cerimônia, temendo não poder voltar ao seu país. Em prisão domiciliar, a opositora birmanesa Aung San Suu Kyi, premiada em 1991, foi autorizada a viajar a Oslo pela junta militar que governava Mianmar, mas decidiu não ir.

Em 2010, o dissidente chinês Liu Xiaobo estava preso. O prêmio foi colocado sobre uma cadeira, simbolicamente vazia. Pouco mais de uma década depois, em 2022, o ativista de direitos humanos bielorrusso Ales Bialiatski, preso, foi representado pela esposa, Natalia Pinchuk.

Vencedores Prêmio Nobel 2023

Criado no ano de 1900, o Prêmio Nobel está dividido em seis categorias: Medicina, Física, Química, Literatura, Economia, adicionada posteriormente, e a mais aguardada de todas, o Nobel da Paz.

Neste ano, os prêmios estão sendo anunciados entre o dia 2 e 9 de outubro, em Estocolmo, na Suécia, e em Oslo, na Noruega, para aqueles que, segundo o desejo de seu criados, o sueco Alfred Nobel (1833-1896), contribuíram para o "bem da humanidade".

A primeira categoria anunciada foi a de Medicina. A bioquímica húngara Katalin Kariko e o cientista americano Drew Weissman ganharam o Nobel da Medicina pelas suas descobertas na tecnologia do RNA mensageiro que abriram caminho à produção de vacinas contra a Covid-19.

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Já o Nobel de Física 2023 foi concedido a dois franceses e um húngaro que criaram ferramentas para estudar o comportamento de elétrons com pulsos de luz numa escala de tempo minúscula: Anne L’Huillier, Pierre Agostini e Ferenc Krausz.

O Prêmio Nobel da Química deste ano foi concedido a três cientistas, pioneiros na tecnologia dos "pontos quânticos", presentes hoje em algumas TVs e monitores de LED. São eles o francês Moungi Bawendi, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT); o americano Louis Brus, da Universidade Columbia; e o russo Alexei Ekimov, que trabalha para a empresa Nanocrystals Technology.

Já o norueguês Jon Fosse venceu o Nobel de Literatura. O escritor e dramaturgo é considerado um dos grandes autores da sua geração, celebrado por transitar entre a prosa e a poesia, o ensaio e a ficção, o teatro e os títulos infantis.

Um dos mais aguardados prêmios da semana, o Nobel da Paz, foi concedido à ativista iraniana Narges Mohammadi "pela sua luta contra a opressão das mulheres no Irã e pela sua luta para promover os direitos humanos e a liberdade para todos", disse a presidente do Comitê Norueguês do Nobel, Berit Reiss-Andersen, em Oslo.

Ainda não foi anunciada a personalidade a quem será concedida o Prêmio Nobel de Economia.

Apesar do anúncio ocorrer no início de outubro, os prêmios serão entregues apenas no dia 10 de dezembro, data do aniversário da morte de Nobel.

O embaixador da Rússia foi excluído da cerimônia em Estocolmo devido à guerra na Ucrânia. Já em Oslo, o Instituto Nobel norueguês prevê convidar todos os embaixadores.