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Empresa chinesa vendeu dois satélites aos mercenários russos do grupo Wagner; entenda

Investigação da AFP obteve contrato de companhia ligada ao grupo paramilitar

Agência O Globo - 06/10/2023
Empresa chinesa vendeu dois satélites aos mercenários russos do grupo Wagner; entenda

O grupo paramilitar russo Wagner, outrora presente na Ucrânia e ativo na África, assinou no final de 2022 um contrato com uma empresa chinesa para adquirir dois satélites de observação e imagem, conferindo-lhe um poder de inteligência sem precedentes, segundo documento obtido pela AFP.

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“Diga-me quem tem satélites de reconhecimento neste país além da EPSD [Empresa Provedora de Serviços de Defesa] Wagner”, disse ironicamente seu chefe, Yevgeny Prigojin, em abril, no sistema de mensagens Telegram, referindo-se às capacidades espaciais limitadas do exército regular russo.

Ao final de um longo trabalho investigativo, a AFP conseguiu esclarecer as ligações entre Wagner e as empresas chinesas que forneceram informações obtidas por satélite aos mercenários russos.

Segundo uma fonte de segurança europeia, algumas destas imagens até ajudaram o grupo a preparar-se para o motim em junho, a maior ameaça que o presidente russo, Vladimir Putin, enfrentou em duas décadas no poder.

E levanta uma questão: o que sabia a China sobre os projetos de Wagner contra o seu aliado russo?

De acordo com um contrato comercial redigido em inglês e russo e assinado em 15 de novembro de 2022, a empresa Beijing Yunze Technology Co. Ltd vendeu por 235 milhões de yuans (cerca de 31 milhões de dólares) à Nika-Frut, uma empresa do grupo Prigojin, dois satélites de observação de altíssima resolução (75 cm) do gigante chinês do setor espacial Chang Guang Satellite Technology (CGST).

O acordo também prevê o fornecimento de imagens da constelação CGST mediante solicitação. Segundo a fonte de segurança europeia, isto permitiu a Wagner obter imagens da Ucrânia e de África (Líbia, Sudão, República Centro-Africana, Mali), onde operam os seus mercenários.

A empresa russa chegou a encomendar cerca de 80 imagens do território russo no final de maio de 2023, especificamente da rota entre a fronteira ucraniana e Moscou que os mercenários percorreram no mês seguinte durante o seu breve motim, segundo esta fonte.

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Este motim frustrado em 24 horas consumou a ruptura final entre Putin e Prigojin, semanas antes da morte do mercenário. Através do contrato, o cliente adquiriu também direitos sobre satélites da constelação operada pela chinesa CGST, que conta atualmente com uma centena e espera atingir os 300 até 2025.

O acordo estabelece que após receber cada encomenda do seu cliente, “o fornecedor orientará os satélites” com base nas imagens solicitadas, antes destas serem enviadas para uma estação terrestre para processamento e fornecimento.

“O cliente baixará os dados da imagem da nuvem” e poderá retê-los por sete dias. Os grupos Nika-Frut e Beijing Yunze não responderam às perguntas da AFP.

Mas por que os militares russos não puderam fornecer diretamente essas imagens ao grupo Wagner?

— A Rússia não tem este tipo de capacidade. Seu programa de satélites não tem funcionado bem recentemente —, explica à AFP Gregory Falco, pesquisador da Universidade Americana Cornell, em Nova York.

O grupo Wagner, por sua vez, já demonstrou ter uma capacidade de inteligência superior à das forças armadas russas, acrescenta o especialista.

O fornecimento de imagens de satélite do grupo Wagner pela China não surpreende os Estados Unidos. O Departamento de Comércio dos EUA decidiu em 24 de fevereiro de 2023 incluir a Beijing Yunze Technology Co. Ltd e a corretora de imagens de satélite Head Aerospace Technology em sua lista de sanções.

“Estas empresas contribuíram significativamente” para ajudar os militares russos na Ucrânia e “estão envolvidas em atividades contrárias à segurança nacional dos Estados Unidos e aos [seus] interesses”, segundo um documento oficial online.

Em 12 de abril de 2023, Washington também sancionou “80 entidades e indivíduos que continuam a permitir e facilitar a agressão russa”. Entre os primeiros está Head Aerospace Technology, por distribuir "imagens de satélite de locais na Ucrânia para empresas afiliadas à EPSD Wagner e Yevgeny Prigojin".

A AFP conseguiu verificar a identidade do signatário do contrato do lado russo: Ivan Mechetin. Segundo várias fontes, este homem de 40 anos é o diretor geral da empresa Nika-Frut, subsidiária do grupo Concord liderado por Prigojin.

“A Nika-Frut está registrada como uma empresa de comércio de alimentos, mas faz muitas outras coisas. É um modelo bem conhecido no grupo de Prigojin”, explica Lou Osborn, da ONG de pesquisa digital All Eyes on Wagner (AEOW).

A Nika-Frut enviou várias encomendas de alimentos para a República Centro-Africana em 2019 para a mineradora Lobaye Invest. Esta empresa é uma subsidiária histórica da empresa M-Finans, que Prigojin controlou no passado e que está ligada às operações do grupo Wagner no país africano. A Lobaye Invest está sujeita a sanções europeias desde fevereiro.