Brasil
De comida persa à venezuelana, imigrantes somam novos temperos e sabores à gastronomia de São Paulo
Cardápios fartos e diversificados são oferecidos por quem busca recomeçar após fugir de crises em seus países; estado é o segundo mais procurado no Brasil em solicitações de refúgio
De cozinha japonesa estrelada no guia Michelin a comidas de rua de Taiwan, São Paulo oferece experiências para todos os paladares e bolsos. Mas a culinária plural, originada nos diversos povos que aportaram no planalto paulista, não para de se diversificar. Novos imigrantes, muitos deles refugiados, começam a ocupar mais espaços no cenário gastronômico da cidade. Sabores, formas e consistências de delícias do Irã, Afeganistão, Venezuela e até mesmo novos temperos dos tradicionais sírios, libaneses e turcos — antes agrupados no universo “árabe” — abrem o paladar e ajudam na quem chega por aqui a se sentir mais à vontade.
Dono de uma holding de empresas de eletricidade, turismo e água mineral no Irã, o engenheiro Amir Nasiri, de 39 anos, deixou seu país há 10 anos com a mulher e um cachorrinha shitzu, chegando primeiro à Bahia, onde tem um primo. A última lembrança em solo iraniano é a de ter abandonado seu carro no aeroporto e ter saído sem dinheiro algum.
Sabores sem fronteiras: conheça pratos de chefs imigrantes que vem conquistando o paladar dos paulistas
Apaixonado por culinária, viveu também em Belo Horizonte, onde cozinhava em eventos e fazia churrascos — já que uma das especialidades do Irã são carnes grelhadas —, antes de desembarcar em São Paulo, no começo de 2020, para investir num restaurante. Logo, suas misturas que vêm de influências da Tailândia, Malásia, Índia e Japão, associadas à substituição de ingredientes, como jabuticaba no lugar de romã, fizeram com que se destacasse como chef.
— Os clientes começaram a divulgar no boca a boca e passamos a vender no delivery. Eu fazia tudo, da limpeza à comida, do atendimento à contabilidade — diz ele, que há dois meses trocou a Paulista pela Avenida São Gabriel, entre o Itaim e os Jardins, onde inaugurou o Kebab Persa.
A gastronomia agora é comandada por sua mulher, Maryam Hosseini, e leva temperos com propriedades medicinais, como o sumac (antioxidante) e o endro (controle de pressão).
— Nosso kebab é à moda persa, com espeto de aço. Isso muda totalmente o sabor. A madeira faz queimar por fora, mas por dentro fica cru — explica ele, acrescentando que, com as mesas lotadas, a ideia é ampliar o menu com pratos do Norte do Irã, que tem comida mais vegetariana e baseada em frutos do mar.
Chegada de nova leva
Só no ano passado, no Brasil foram feitas 50.355 solicitações de refúgio, de acordo com a plataforma DataMigra, do Observatório das Migrações Internacionais do Ministério da Justiça. A maioria é da Venezuela (67%), depois Cuba (10,9%) e Angola (6,8%). São Paulo foi o segundo estado mais procurado, com 7.839 solicitações, atrás apenas de Roraima (25.113), na fronteira norte do país.
Yilmary Carolina de Perdomo, de 41 anos, chegou com o marido e três filhos, sete anos atrás, movida pela insegurança na Venezuela. O casal é especialista em educação e terapia ocupacional para crianças, mas não conseguiu validar os diplomas no Brasil. Ela começou vendendo café com bolo num ponto de ônibus em São Caetano do Sul (SP), e um ano depois passou a oferecer comida venezuelana em eventos empresariais e de rua.
— Os brasileiros não conheciam praticamente nada da culinária venezuelana — diz Yilmary, que na tenda Tentaciones da Venezuela tem como hits cachapas (espécie de panqueca feita com farinha de milho), arepas (tipo de pão) e hallacas (similar à pamonha, recheada com carnes e enrolada em folha de bananeira).
Só não é fácil obter folhas de bananeira, comuns na Venezuela, mas que aqui Yilmary busca em sítios. Para superar diferenças de paladar, ela faz pequenas adaptações:
— O milho aqui é mais doce, e o brasileiro come muita carne, o que nos fez usá-la mais nos recheios. Na Venezuela os recheios são em grande parte feitos com vegetais.
Para Alexandre Marcelo Bueno, professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Mackenzie, autor do artigo “Espaço e experiência em restaurantes imigrantes”, a gastronomia costuma ser uma escolha para sair da situação econômica precária:
— A experiência gustativa ajuda a reduzir a distância geográfica. E ao mesmo tempo eles atraem conterrâneos — explica.
Para os brasileiros, frequentar essas mesas é uma viagem por novas culturas. Bueno lembra que o dono do premiado Rinconcito Peruano, hoje uma rede de 10 restaurantes, começou vendendo artesanato e comida na rua. No entanto, mesmo a experiência gastronômica guarda traços de racismo e xenofobia. Os restaurantes africanos, por exemplo, ainda não se transformaram em fenômeno, apesar da qualidade e diversidade. A chef camaronesa Melanito Biyouha abriu o Biyou’Z com a intenção de apresentar para a cidade a comida do seu continente. Reuniu no cardápio heranças culinárias de países como Angola, Nigéria, Senegal e Gana, além da República dos Camarões. Hoje o Biyou’Z tem dois endereços.
— Eles têm o fufu, um bolinho de milho e arroz, não tem nada parecido aqui. É uma comida muito boa, mas costumam ter frequência menor do que os peruanos — diz o professor do Mackenzie.
Coordenador da Missão Paz, que engloba a Casa do Migrante, o padre Paolo Parise ressalta que o caminho nesse ramo pode ser árduo:
—Vi muitas iniciativas não se sustentarem depois de um início promissor. Aconteceu com sírios, congoleses, haitianos, colombianos.
Ex-funcionário do governo afegão, Ahmad Khalid Omid chegou em setembro de 2022 com a mulher e o filho de 6 anos. Vive num abrigo no ABC paulista, e seu plano é começar vendendo pratos da cozinha afegã feitos por sua mulher, através de aplicativo. O casal tem experiência: foi dono de restaurante na Índia.
— O plano de investimento está pronto, mas ainda não temos dinheiro. Estamos buscando financiamento bancário para comprar os equipamentos de cozinha — diz Omid, que por enquanto fornece refeições para uma ONG, que distribui para refugiados.
São Paulo tem hoje um único restaurante afegão, Ko-i-Baba, na Liberdade. Com a chegada dos novos imigrantes, a tendência é que outros sejam abertos. Alguns projetos, como a plataforma Refugiados Empreendedores, do Acnur, da ONU, ajudam a dar visibilidade às histórias de pessoas que encontraram na gastronomia a chave do recomeço.
Comida na garagem
No caso da refugiada síria Razan Suliman, apesar dos obstáculos, há o sonho de multiplicar pela capital paulista o Razan Comida Árabe, que funciona na sua garagem, no Ipiranga. A comida caseira, que também chega por delivery, inclui delícias tradicionais como kibes, esfihas, falafel, tabule, coalhada, homus e babaganuche. De sobremesa, as pedidas são os ninhos de nozes, caju, damasco e pistache e o halawi, de mel, açúcar e tahine.
Por trás de aromas tão típicos da sua terra, ela batalha para criar três filhos (de 8 e 4 anos e um bebê de 1 ano e sete meses) sem ajuda do marido, que morreu no ano passado tentando entrar ilegalmente nos EUA pelo México. A família chegou ao Brasil em 2014, fugindo do terror imposto pelo Estado Islâmico na Síria. Razan começou vendendo comida no próprio prédio onde morava, para vizinhos, por WhatsApp.
Apesar de ter conquistado fama com seus pratos, a síria naturalizada brasileira passa por dificuldades para manter o negócio. Ela não consegue mais apoio das entidades de refugiados nem ingressar no Bolsa Família.
— Nos fins de semana abro a garagem de casa como restaurante e as pessoas vêm comer aqui. Mas agora fiquei sozinha com as crianças e está mais difícil — diz Razan. — Meu sonho é fazer comida e crescer igual o McDonalds, com um restaurante em cada bairro.
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