Internacional
Do piquete ao palanque: Onda de greves nos EUA chega à corrida pela Casa Branca
De roteiristas a funcionários de montadoras automobilísticas, mais de 350 mil já cruzaram os braços nos últimos meses, reivindicando melhores condições de trabalho em um momento de alta do sindicalismo
Quando o sindicato dos roteiristas de Hollywood anunciou que entraria em greve, em maio deste ano, muitos pensaram que a mobilização poderia afetar a produção de filmes, séries e programas de TV. Mas seus impactos foram além das telas: aquele seria só o começo de uma onda de paralisações — apelidada pela imprensa de "verão das greves" — que já dura mais de quatro meses e levou cerca de 546 mil trabalhadores a cruzar os braços no país, ameaçando a economia e podendo delinear as eleições presidenciais em 2024, provavelmente disputadas pelo presidente Joe Biden e o seu antecessor, Donald Trump. Ambos terão restes políticos com os grevistas nesta semana.
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De um lado há Biden, principal nome do Partido Democrata na corrida eleitoral e que sempre se declarou como "o mais pró-sindical" dos presidentes, a ponto de marcar presença, na terça-feira, em Detroit, Michigan, na terça-feira, a convite do líder do sindicato, Shawn Fain, para discursar na greve dos trabalhadores das montadoras. Do outro, Trump, que apenas recentemente começou a adotar um discurso contra grandes corporações após fazer um governo ajudando as grandes companhias americanas, tem comício marcado para quarta-feira nas cercanias de Detroit, onde deverá usar a greve como um sinal da decadência americana e das falhas econômicas de Biden.
Greve simbólica
A última grande adesão ao movimento foi o United Auto Workers (UAW), sindicato que representa funcionários de três importantes montadoras automotivas e que anunciou uma paralisação conjunta histórica na semana passada, em Michigan, Missouri e Ohio. Sem avançar nas negociações com a General Motors e a Stellantis, o sindicato decidiu ampliar a greve nos centros de distribuição e reposição das duas empresas (já a Ford, que havia sido inicialmente afetada, fez concessões nos últimos dias). Agora, a mobilização abrange 20 estados e envolve cerca de 18.300 funcionários — número que ainda pode aumentar, pois o setor conta com146 mil trabalhadores.
Biden conseguiu, nas eleições de 2020, reconquistar para os democratas os estados mais industrializados para os EUA, como Michigan, Pensilvânia e Wisconsin. Na ONU, na semana passada, defendeu os direitos trabalhistas e, com o brasileiro Lula, criou um pacto para a garantia de direitos para trabalhadores de aplicativos.
Movimento de trabalhadores em geral votam com os democratas, mais preocupados com direitos e a luta contra a desigualdade. Mas greves e acordos, no entanto, prejudicam os cofres públicos e podem aumentar a inflação com o aumento de salários, o que prejudicaria Biden, que já recebe baixas avaliações em sua gestão econômica, avalia o professor de Ciência Política David Schultz, da Universidade de Hamline, de Minnesota.
— No geral, Biden tem mais a perder como incumbente e na forma como isso afeta a economia — explica Schultz. — Mas ele também precisa apoiá-los para conter a perda da classe trabalhadora branca para Trump e o Partido Republicano.
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Desafio para Trump
Segundo o professor Jerry Davis, da Escola de Negócios da Universidade de Michigan, o ex-presidente — em cujo mandato a UAW também entrou em greve contra a GM — e seu partido há muito tentam conquistar a classe trabalhadora americana, adotando discursos contra grandes empresas (principalmente as Big Techs) e apoiando políticas mais protecionistas no comércio.
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— Os democratas sempre foram vistos como o partido dos trabalhadores, enquanto os republicanos eram o partido dos negócios e dos cortes de impostos. Antes, quando tentavam atrair eleitores trabalhadores, dependiam de questões sociais e culturais em vez de questões econômicas — explica Davis. — As greves sindicais serão o teste definitivo de quanto os republicanos realmente mudaram. Será que eles realmente se alinhariam com trabalhadores organizados?
Além disso, para Trump, "apoiar as greves trabalhistas pode ter um custo alto", fazendo-o perder eleitores (sobretudo dos setores empresariais) afetados pelas greves e por suas consequências econômicas, observa Schultz.
Reflexo da pandemia
Além do UAW, paralisações também ocorreram recentemente entre trabalhadores do setor da hotelaria, em cafeterias, livrarias, fábricas de cerveja, além dos mais de 180 mil atores e roteiristas que se uniram em uma greve conjunta (e que segue sem acordo) pela primeira vez em 65 anos. Houve ainda a ameaça de uma grande greve da UPS, maior empresa de logística dos Estados Unidos, que poderia ter custado ao país mais de US$ 7 bilhões (R$ 34 bilhões) — o sindicato conseguiu um acordo dias antes da paralisação dos mais de 340 mil trabalhadores começar.
No geral, as demandas são semelhantes: aumentos salariais substanciais e melhores condições de trabalho, entre outras exigências pontuais.
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Para o professor de História dos EUA Marcos Sorrilha, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Franca (SP), a alta incidência de greves neste ano é, principalmente, um reflexo do fim da pandemia de Covid-19 e do aumento do lucro das empresas durante o período.
— Ainda que o desemprego esteja baixo, o aumento do salário não acompanhou a alta da inflação. E os lucros dessas empresas cresceram, o que gera um desconforto em relação a esse descompasso.
Apoio x filiação
Enquanto isso, o apoio aos sindicatos está em alta nos EUA desde 2017, segundo um levantamento da Gallup. Hoje, 67% dos americanos se dizem favoráveis a eles e, no ano passado, o índice de aprovação chegou ao mesmo patamar de 1965 (71%) — um dos períodos de maior atividade e apoio sindical no país no pós-Segunda Guerra.
Entre os jovens trabalhadores, o número passa de 80%. Para Kent Wong, diretor do Centro de Trabalho da Universidade da Califórnia (UCLA), isso pode ser explicado porque "muitos estão compreendendo que há muito pouco para eles no futuro da economia e baixíssimas perspectivas quando entram no mercado de trabalho".
Já para Sorrilha, há ainda o fato de se tratar da primeira geração desde o pós-guerra em que a condição financeira dos filhos é muito pior do que a dos pais.
— A mobilização traz um alento de que esse cenário pode mudar — destaca.
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Por outro lado, há uma baixa histórica no número de filiações: hoje, apenas 10,1% dos trabalhadores são sindicalizados, menor taxa desde o início dos registros, em 1983.
O que pode explicar tal diferença é a dificuldade dos sindicatos sob as leis trabalhistas nos EUA. Ao contrário do Brasil, os sindicatos americanos não são estabelecidos por categorias profissionais em nível estadual, isto é, cada empresa precisa aprovar sua própria instituição sindical. Também há regras diferentes para empresas públicas e privadas.
— Leis trabalhistas dos EUA são muito a favor da dominação corporativa. Embora existam leis contra empregadores que negociam de má fé, é algo difícil de se provar — explica Wong. — Muitos arrastam negociações por meses ou anos.
Além disso, muitas empresas gastam consideráveis montantes para impedir sindicalizações e pressionar os trabalhadores. E, mesmo após a formação de um sindicato, leva-se em média 465 dias para que um acordo seja assinado, segundo um levantamento da Bloomberg.
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