Internacional

A Argentina para além dos clichês do nosso vizinho mais cativante

Livro de Janaína Figueiredo trata de política, economia e manias dos hermanos de forma leve, ajudando a explicar a eleição crucial deste ano

Agência O Globo - 24/09/2023
A Argentina para além dos clichês do nosso vizinho mais cativante
Casa Rosada - Foto: Internet

Admiração, inveja, rivalidade e, mais recentemente, apreensão. Estes são os sentimentos mais comuns dos brasileiros sobre a Argentina. O fascínio pela cultura, história, gastronomia e modo de vida dos hermanos, contudo, nem sempre é baseado em conhecimento, que ainda é esparso, sobre nossos vizinhos. Da mesma forma, as sequenciais crises econômicas e políticas argentinas — que afeta bem mais que nossos planos de férias para Buenos Aires, vinícolas ou pros Andes — também precisam ser mais bem traduzidas. Para ajudar a aplacar essa carência, Janaína Figueiredo, repórter especial do GLOBO baseada na capital portenha, lança no dia 29 “¿Qué pasa, Argentina?”, pela Globo Livros, na Livraria da Travessa de Ipanema (Rio).

— Conheci a Argentina aos 9 anos, e desde então minha vida está profundamente ligada ao país. Cresci como jornalista cobrindo as crises argentinas. Escrever este livro era um caminho natural e uma maneira de compartilhar o que aprendi com leitores ávidos por entender um país tão complexo — disse Figueiredo, que, carioca, já passou mais de três décadas na Argentina, em diversas fases de sua vida.

Villa Freud

Com uma linguagem direta e franca, a obra, já à venda, vai além de um clássico livro de reportagem e trata de questionamentos sobre como é a vida em Buenos Aires. Figueiredo usa de sua vivência para explicar questões que podem parecer prosaicas, mas que denotam a espiral de problemas do país, visto em questões como comprar uma cortina, saber o preço justo do quilo do pêssego ou tirar do papel o sonho do carro novo.

Ela relaciona a relação visceral dos portenhos com o dólar às causas políticas desta crise de moeda. Tudo em um país que parecia, no início dos anos 1900, vaticinado a ser uma grande potência global. E, mesmo cada vez mais distante disto, ainda tem conquistas que são inéditas para nós, como os cinco prêmios Nobel — enquanto nós ainda não temos nenhum — padrões de educação, saúde e segurança ainda superiores às metrópoles brasileiras, em que pese o atual sufocamento econômico no vizinho do cone sul.

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De quebra, o livro — que tem o prefácio do embaixador Marcos Azambuja — mostra de onde vem a obsessão no país pela psicologia e análise (Buenos Aires tem até a “Villa Freud” em Palermo e cafés que remetem à terapia), como um país em crise tem um dos cinemas mais premiado do mundo ou até mesmo quem é maior — Messi ou Maradona.

O esporte é abordado com uma visão política e sociológica, questão fundamental no país que concentra o maior número de estádios em uma região metropolitana: incríveis 36 na Grande Buenos Aires. O livro também ajuda a destrinchar as razões para o futebol no país vizinho ser tão mais violento que no Brasil e com solução mais complexa que na Inglaterra, que conseguiu banir os hooligans — a Argentina registra 346 mortes em estádios desde 1922.

Eleições de outubro

Mas a grande missão de “¿Qué pasa, Argentina?” é ajudar a explicar o país, que passou de umas nações mais ricas do mundo a uma sucessão de crises, que empobrece a população que, outrora, orgulhava-se por suas condições sociais e era vista como esnobe e egocêntrica pelos vizinhos.

— Entender as origens da crise argentina é fundamental para entender seu presente. São 80anos de dar voltas em círculos, sem encontrar saídas, e aprofundando cada vez mais os problemas econômicos, sociais e políticos. O colapso atual, que deve piorar, é consequência de décadas de decisões equivocadas, políticas erráticas, golpes de Estado e desgaste da democracia — disse Figueiredo.

O livro se torna ainda mais essencial diante das eleições de outubro, que têm como favorito Javier Milei contra o governista Sergio Massa (atual ministro da Economia de Alberto Fernádez) e Patricia Bullrich (que foi ministra no governo do ex-presidente Mauricio Macri). O candidato da extrema direita, vencedor das primárias de agosto, propõe a dolarização da economia e o fim do Banco Central, além de desdenhar o Mercosul, com respingos diretos do lado de cá da fronteira.

— O fenômeno do líder de extrema direita Javier Milei, favorito nas presidenciais de 22 de outubro, faz sentido quando mergulhamos na História argentina. Milei promete aos argentinos voltar ao passado glorioso das primeiras décadas do século XX, quando a Argentina estava entre os dez países mais ricos do mundo, e despertou esperança num contexto de profunda crise dos partidos tradicionais — disse a autora.

Nova diáspora

Baseada em sua vivência — e inspirado pelo pai, o jornalista Newton Carlos, um dos pioneiros no jornalismo internacional e amante da América Latina, falecido em 2019 aos 91 anos — Janaína Figueiredo consegue estabelecer comparações e paralelos com o Brasil que facilitam a compreensão de um país tão complexo, intenso e apaixonante como a Argentina.

— A Argentina é um parceiro estratégico do Brasil na região. Conhecer melhor o país de nossos hermanos é importante e necessário porque tudo o que acontece por lá tem impacto em nosso país. O livro busca aproximar os brasileiros de um país que os fascina, mas sobre o qual muitos conhecem pouco.

Embora no imaginário de muitos ainda exista uma Argentina sofisticada, com cultura forte no tango, na gastronomia, no cinema e na literatura, nos últimos anos ampliou-se a percepção de um país que convive com crises intermináveis que se sobrepõem, inflação fora de controle e uma queda do padrão de vida e do poder de compra com poucos paralelos no mundo. O desafio para a reconstrução do país vizinho, que em grande medida influencia o Brasil, é retratado junto com uma forte visão do novo êxodo de argentinos, em uma diáspora em busca de alternativas e novas perspectivas.

Como conclui Figueiredo: “Se o Brasil não é para amadores, a Argentina não é para os fracos.”