Internacional

Investigação do New York Times sugere que míssil ucraniano, e não russo, causou tragédia com 15 mortos em mercado

Jornal analisou fragmentos do armamento, imagens de satélite e gravações de câmeras de segurança, além de ouvir relatos de testemunhas do bombardeio a um mercado no início do mês

Agência O Globo - 19/09/2023

No último dia 6, um bombardeio à cidade de Kostantinovka, no Leste da Ucrânia, foi um dos mais mortais em meses de guerra, matando pelo menos 15 civis e ferindo outros 30. Os fragmentos de metal do míssil atingiram um mercado, perfurando janelas e paredes e deixando algumas vítimas irreconhecíveis.

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Menos de duas horas depois, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, culpou os “terroristas” russos pelo ataque e muitos veículos de mídia publicaram a informação. Desde que invadiu em larga escala a Ucrânia, a Rússia atacou sistematicamente civis e bombardeou escolas, mercados e residências, como tática proposital para disseminar o medo na população. Em Kostantinovka, em abril, soldados atacaram casas e uma pré-escola, matando seis pessoas.

O New York Times compilou e analisou evidências, incluindo fragmentos de mísseis, imagens de satélite, relatos de testemunhas e publicações em redes sociais que sugerem que o bombardeio devastador foi provocado por um projétil de defesa aérea ucraniano desgovernado, disparado pelo sistema Buk de lançamento de mísseis terra-ar.

O ataque parece ter sido um trágico acidente. Especialistas em defesa aérea dizem que mísseis como o que atingiu o mercado podem desviar do trajeto por várias razões, incluindo um defeito eletrônico ou um estabilizador danificado no momento do lançamento.

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A provável falha no projétil ocorreu em meio aos confrontos frequentes no entorno. Forças russas bombardearam Kostantinovka na noite anterior; há relatos sobre disparos de artilharia ucraniana em um grupo local no Telegram minutos antes do ataque ao mercado.

Um porta-voz das forças armadas da Ucrânia disse que o serviço de segurança do país está investigando o incidente e que, de acordo com a legislação nacional, não pode comentar mais o caso. As autoridades ucranianas tentaram inicialmente impedir que jornalistas do New York Times tivessem acesso aos destroços do míssil e à área atingida, logo após o ataque. Mas os repórteres conseguiram chegar ao local, entrevistar testemunhas e recolher restos do armamento utilizado.

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O ataque

Imagens de câmeras de segurança mostram que o míssil voou para Kostantinovka vindo da direção do território controlado pela Ucrânia, e não do outro lado das linhas russas.

À medida que se ouve o som do projétil se aproximando, pelo menos quatro pedestres parecem virar simultaneamente a cabeça em direção ao barulho. Eles olham na direção da câmera — a mesma do território sob controle ucraniano. Momentos antes do impacto, é possível ver o reflexo do míssil passando sobre dois carros estacionados, mostrando que vinha do noroeste.

A ogiva do armamento explodiu a poucos metros do solo, pouco antes do impacto, espalhando fragmentos de metal ao redor.

Base de lançamento

Outras evidências revelam que, minutos antes do ataque, os militares ucranianos lançaram dois mísseis terra-ar em direção à frente de combate russa, a partir da cidade de Druzhkivka, 16 km a noroeste de Kostantinovka.

Repórteres do New York Times estavam em Druzhkivka quando ouviram o lançamento de um míssil às 14h pelo horário local, seguido alguns minutos depois por um segundo disparo. Por acaso, um integrante da equipe gravou o ruído do primeiro lançamento em uma mensagem de voz.

Moradores de Druzhkivka também relataram um lançamento no mesmo horário, em um grupo no Telegram. “Mais um” dizia a publicação no grupo, às 14h03, em referência ao segundo disparo. Pessoas que estavam perto do local de lançamento descreveram o som como mais alto do que o normal — além do volume do barulho da guerra a que já se acostumaram — o que vai de encontro aos relatos de testemunhas de lançamentos anteriores com o mesmo sistema Buk. O horário desses lançamentos coincide com o do choque do míssil no mercado de Kostantinovka, por volta de 14h04.

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Outro indicador crucial: marcas de queimado. Vários mísseis de defesa aérea são disparados da parte traseira de um veículo e queimam a vegetação no solo quando são lançados. Análises de imagens de satélite de antes e depois do ataque mostram marcas de queimado no solo perto das trincheiras, possivelmente indicando que o local foi usado para lançar mísseis.

O míssil

Após o ataque, as autoridades ucranianas disseram que as forças russas usaram um míssil disparado por um sistema de defesa aérea S-300, que a Rússia usou tanto para interceptação como para atacar alvos no solo. Mas um míssil S-300 carrega uma ogiva diferente daquela que explodiu em Kostiantynivka.

As fachadas metálicas dos edifícios mais próximos da explosão foram perfuradas com centenas de buracos quadrados ou retangulares, provavelmente feitos por objetos com formato de cubo lançados ao redor pelo projétil.

As medições dos buracos e fragmentos encontrados no local são condizentes com um armamento em particular: o míssil 9M38, que é disparado pelo veículo de defesa antiaérea do sistema Buk. Há informação de que a Ucrânia utiliza o sistema, assim como a Rússia.

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Alguns dos furos têm menos de 10 milímetros de largura, enquanto outros são um pouco maiores. O 9M38 contém dois tamanhos diferentes de fragmentos cúbicos de metal sólido: 8 milímetros e 13 milímetros de diâmetro.

Um repórter do New York Times também revisou outros fragmentos de mísseis recuperados de vários locais na Ucrânia que foram disparados pelos sistemas de defesa aérea russos S-300, S-400 e Buk, além dos de dois sistemas diferentes de defesa aérea dos Estados Unidos. O formato e as medidas dos destroços mostram que a destruição no mercado tem mais probabilidade de ter sido causada ​​por um 9M38.

Dois especialistas militares em explosivos que trabalham de forma independente — e pediram para não serem identificados — chegaram à mesma conclusão e afirmaram que os fragmentos e a destruição no local do ataque são mais compatíveis com um 9M38.

Várias testemunhas ouviram ou viram forças ucranianas disparando mísseis terra-ar de Druzhkivka em direção a Kostantinovka no momento do bombardeio no mercado. E as provas recolhidas no mercado mostram que o projétil veio daquela direção.

Não está claro por que o míssil, que tem um alcance máximo de pouco mais de 27 quilômetros, caiu em Kostantinovka — embora seja possível que ele tenha funcionado mal e tenha caído antes de atingir o alvo.

De todo modo, a um alcance tão curto – menos de 16 quilômetros – é mais provável que o míssil tenha caído ainda com reserva de combustível no motor do foguete, que detonaria ou queimaria com o impacto, oferecendo uma possível explicação para as marcas de queimado espalhadas pelo chão do mercado.