Internacional

'Não há nenhuma justificativa para o falso dilema do Brasil com o Tribunal Penal Internacional', diz ex-juíza da corte

Magistrada do TPI por 13 anos, Sylvia Steiner afirma que eventual saída do Brasil da corte representaria uma violação à Constituição e abriria um precedente favorável à extrema direita global

Agência O Globo - 14/09/2023
'Não há nenhuma justificativa para o falso dilema do Brasil com o Tribunal Penal Internacional', diz ex-juíza da corte

Ao questionar a participação do Brasil no Tribunal Penal Internacional (TPI), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pegou o mundo de surpresa, mas especialmente Sylvia Steiner, ex-juíza da corte e única brasileira a já ter integrado o colegiado. Em entrevista ao GLOBO, a jurista rebateu as recentes declarações de Lula de que apenas países pequenos são signatários do tratado que fundou o TPI, o Estatuto de Roma — reconhecido por 123 nações, mas rejeitado por países como Estados Unidos, Rússia, China e Israel.

— Países que têm tendência a desprezar os direitos humanos não vão ingressar no TPI, mas isso não tira a legitimidade do tribunal — afirma.

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Para Steiner, a retórica utilizada pelo petista para defender a liberdade do presidente russo Vladimir Putin, alvo de um mandado de prisão do TPI pela suposta deportação ilegal de crianças ucranianas, vai na contramão da histórica defesa brasileira dos direitos humanos. O "falso dilema", como prefere chamar, começou após Lula ser questionado se cooperaria com o tribunal em uma eventual visita de Putin ao Brasil, que sediará a cúpula do G20 em 2024. Na tradução da jurista, indicar que o país poderia sair da única corte internacional que investiga crimes contra a Humanidade, além de inconstitucional, abriria um precedente favorável à extrema direita global.

Na esteira da polêmica, Lula também chegou a dizer que sequer conhecia o TPI. No entanto, foi durante o seu primeiro mandato, em 2003, que Steiner foi eleita para corte, onde ficou até 2016. Segundo ela, o resultado positivo foi, em parte, graças ao empenho do governo brasileiro em viabilizar o seu nome, sobretudo do então chanceler e atual assessor especial da Presidência, Celso Amorim.

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Como foi a sua indicação para o Tribunal Penal Internacional (TPI)?

Fui indicada em 2002, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, mas foi só no governo Lula, em 2003, que se trabalhou pela minha eleição. Graças ao empenho do então ministro [das Relações Exteriores], Celso Amorim, eu fui eleita no primeiro escrutínio, ocupando uma das três vagas da América Latina logo na primeira composição. Na época, foi uma demonstração do prestígio da diplomacia brasileira.

O Brasil pode sair do TPI?

Em 2005, portanto, no governo do presidente Lula, veio a emenda constitucional nº 45, que acrescentou o parágrafo 4º no artigo 5º da Constituição, que fala sobre direitos e garantias fundamentais. De acordo com esse parágrafo, o Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Isso é uma cláusula pétrea, não pode ser revogada nem alterada. Do ponto de vista jurídico, não há a menor possibilidade do Brasil se desvincular do TPI. Para mim, como jurista, me causa muita estranheza que agora o ministro da Justiça [Flávio Dino], que foi juiz, diga que está estudando se o Brasil pode se desvincular do tribunal. Há outros países que ratificaram o Estatuto de Roma e que, de acordo com a legislação local, podem até se desvincular, mas o Brasil não.

O que significaria para o mundo a retirada do Brasil?

Um verdadeiro desastre, porque o Brasil teve um papel significativo na edição do Estatuto de Roma, em 1998, o ratificou assim que ele entrou em vigor em 2002, e tem sido um grande apoiador do TPI desde então. A comparação de que há grandes países que não são [signatários] ignora que são países que temem a ação do tribunal pois são países invasores, agressores e nunca vão ratificá-lo. Mas todos os países europeus, sem exceção, são partes do Estatuto de Roma; o Japão faz parte; todos os países latino-americanos, à exceção de Cuba, fazem parte. Dizer que o TPI é o tribunal dos poderosos contra os pequeninos não me convence. A saída do Brasil, se fosse possível, seria um passo para trás. É a mesma coisa que dizer que não vai mais respeitar a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a Declaração Universal de Direitos do Homem, a Convenção contra Tortura… Seria uma vergonha. Os dois países que saíram, Burundi e Filipinas, fizeram isso porque tinham investigações abertas no tribunal. E mesmo eles se retirando, as investigações continuaram. Não há nenhuma justificativa para esse falso dilema do Brasil agora com o TPI.

Se fosse viável, a saída do Brasil poderia desencadear um movimento de esvaziamento do TPI?

Eu acho que seria um precedente muito útil para a extrema direita, porque ela sim tem dificuldade em se submeter à jurisdição de tribunais internacionais e às convenções internacionais. Geralmente é a extrema direita que comete atos que são qualificados como crimes contra a Humanidade, então seria um precedente, do ponto de vista político, muito contraditório. A gente se orgulha muito da reconquista da democracia e do Estado de direito no nosso país. Passamos por um período tão tenebroso na ditadura, de violações de direitos humanos, e na hora que saímos disso, começamos a aderir a todos os tratados de proteção de direitos fundamentais. Não tem justificativa se rebelar contra as normas do direito internacional.

Deveria haver uma pressão para grandes nações aderirem ao TPI?

Os Estados Unidos não ratificam nenhum tratado de direitos humanos — nem a Convenção sobre os Direitos da Criança (da Unicef, assinada por 196 países), os Estados Unidos não ratificaram. Na China, existe todo o processo em discussão de reformas institucionais para que se possa ratificar o Estatuto de Roma. Agora, Israel nunca vai ratificar o Estatuto de Roma, porque está sendo investigado pelos crimes praticados na Palestina. Os EUA já foram alvo de uma investigação, que depois foi encerrada, pelos crimes cometidos no Afeganistão. A Rússia agora está sendo investigada pelos crimes cometidos na Ucrânia. Esses países, que têm tendência a desprezar os direitos humanos, não vão ingressar no TPI, mas isso não tira a legitimidade do tribunal. Nós temos atualmente 123 Estados-membros, é mais de dois terços da humanidade. [O Lula] está certo em dizer que há países pequenos, mas a comunidade internacional tem que proteger os países pequenos também. O TPI é um instrumento de respeito aos direitos fundamentais tanto para países grandes como pequenos.