Internacional

China propõe detenção para 'roupas contra espírito chinês'; críticos reagem: 'Ainda podemos zombar do Irã e Afeganistão?'

Debate sobre mudança na lei ocorre em meio a episódios de repressão policial e preconceito social contra vestimentas associadas à cultura japonesa e ao orgulho LGBTQIA+

Agência O Globo - 11/09/2023
China propõe detenção para 'roupas contra espírito chinês'; críticos reagem: 'Ainda podemos zombar do Irã e Afeganistão?'

Na década de 1980, os chineses podiam arrumar confusão por causa do jeito de se vestir. Calças boca de sino ou jeans eram consideradas “trajes bizarros”. Alguns prédios do governo barravam homens com cabelo comprido e mulheres maquiadas ou usando joias. Um patrulhamento feito por escolas e fábricas passava a tesoura em calças de bainha larga ou cabelos mais longos.

Geopolítica: Biden visita Vietnã, ex-inimigo dos EUA, para reforçar frente contra a China

Com ausências de Xi e Putin: Biden e Modi querem usar cúpula do G20 para projetar liderança global

Tudo isso ocorreu no começo da era de reformas e abertura da China. O Partido Comunista estava perdendo o controle estrito sobre a sociedade, e a população estava pressionando os limites de autoexpressão e individualismo. A batalha a respeito da altura dos saltos das mulheres e do comprimento dos cabelos masculinos simbolizava esse embate.

Agora, o governo chinês está propondo mudanças em uma lei que podem resultar em prisão e multas por “usar roupas ou ostentar símbolos em público que sejam prejudiciais ao espírito do povo chinês ou firam os sentimentos do povo chinês”. O que seria considerado uma ofensa não é especificado.

O plano está sendo amplamente criticado, com especialistas em direito, jornalistas e empresários manifestando preocupação ao longo da semana passada. Todos argumentam que, se a medida entrar em vigor, pode dar poder às autoridades de policiar qualquer coisa que não aprovem. Isso poderia ser um grande retrocesso na relação da população com o governo.

"Na História da China, épocas em que a vestimenta e o corte de cabelo ganharam muita atenção correspondem a ‘momentos ruins da História’”, afirmou Zhang Sanfeng na plataforma WeChat, completando “a introdução das emendas não vem do nada. É uma resposta a sentimentos estranhos que emergem na nossa sociedade”. A publicação circulou amplamente antes de ser vetada pela censura.

Estado de vigilância

Sob o comando do presidente chinês, Xi Jinping, o governo tem uma fixação com controle — como as pessoas pensam, o que dizem online e, agora, o que vestem. A China construiu um estado de vigilância com tecnologias modernas, censurando os meios de comunicação e as redes sociais, proibindo até a exibição de tatuagens e homens usando brincos nas telas dos celulares e TVs. A camisa de força ideológica está se aproximando da esfera privada. As escolhas de roupas de cada um estão cada vez mais sujeitas ao escrutínio da polícia ou de pedestres excessivamente zelosos.

Em julho, um senhor repreendeu uma jovem em um ônibus, quando ela ia a uma exposição de Cosplay, onde muitas pessoas se vestem como personagens de filmes, livros, séries de TV ou videogames. Ele reclamou porque a moça estava usando uma vestimenta que poderia ser considerada de estilo japonês. Um segurança de um shopping, no mês passado, expulsou um homem que estava vestido de samurai. E no ano passado, a polícia da cidade de Suzhou, no leste do país, deteve temporariamente uma mulher por usar um kimono. Todos episódios ligados ao sentimento anti-japonês estimulado pelo governo chinês. Mas os confrontos vão além.

Memória: Chile chega rachado aos 50 anos do golpe de Pinochet contra Allende

No mês passado, em Pequim, seguranças que reprimiam expressões de orgulho LGBTQIA+ impediram pessoas vestidas com roupas com a temática do arco-íris de entrar em um concerto da cantora taiwanesa Zhang Huimei, mais conhecida como A-Mei. Também em agosto, pessoas apresentaram reclamações sobre um concerto da cantora taiwanesa Jolin Tsai porque os fãs da artista exibiram luzes com as cores do arco-íris e alguns homens estavam vestidos com o que foi descrito como roupas femininas “extravagantes”. Na semana passada, a polícia repreendeu um homem que estava fazendo uma live vestido com uma minissaia.

— Um homem usando uma minissaia em público, você acha que é energia positiva — gritaram os policiais.

'Polícia da moralidade'

Se as emendas propostas, que estão abertas para consulta pública até 30 de setembro, forem aprovadas pelo legislativo, incidentes como esse podem resultar em multas de até US$680 e até 15 dias de custódia policial. A lei pode elevar a china a se classificar entre os países mais conservadores do mundo.

“A polícia da moralidade está prestes a ser lançada”, um advogado chamado Guo Hui escreveu no Weibo. "Ainda podemos zombar do Irã e Afeganistão?" Internautas postaram fotos de mulheres iranianas e afegãs usando minisaia e outras roupas ocidentais nos anos 1970, antes de seus países serem dominados por regimes autocráticos religiosos.

Muitos estão preocupados com o fato da proposta não especificar o que constituiria uma ofensa. A linguagem que usa [roupas ou símbolos que sejam “prejudiciais ao espírito do povo chinês ou firam os sentimentos do povo chinês”] segue expressões empregadas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e por meios de comunicação oficiais para expressar descontentamento em relação a países e povos ocidentais. Ninguém sabe exatamente o que significam. Sem uma definição clara, o emprego da lei vai depender de interpretação individual de autoridades.