Internacional

'Não é crise migratória, é falta de empatia', diz espanhol que fez 70 mil resgates

Para Oscar Camps, fundador da Open Arms, Europa dificulta chegada de africanos e asiáticos, mas recebeu 5 milhões de ucranianos em pouco tempo

Agência O Globo - 03/09/2023
'Não é crise migratória, é falta de empatia', diz espanhol que fez 70 mil resgates

Oscar Camps é um homem de convicções fortes — o que muitas vezes também é visto como um eufemismo para “teimosia”. Mas às vésperas de completar 60 anos, quase metade dedicados a salvar vidas no mar, este catalão de Barcelona sabe que sua renitência não foi em vão: nos últimos oito anos, a ONG fundada por ele resgatou quase 70 mil pessoas, a grande maioria nas perigosas rotas do Mediterrâneo, por onde se arriscam todos os anos dezenas de milhares de migrantes irregulares vindos da África e da Ásia em busca de uma vida melhor na Europa.

Salva-vidas de carreira, Camps abriu sua primeira empresa em 1999, com a qual operava em praias espanholas no Mediterrâneo e no Atlântico, contratado por governos locais. Foi somente em 2015 que ele atentou para algo maior: ao ver a foto de Alan Kurdi, o menino sírio que morreu afogado em uma praia da Turquia e cuja imagem chocou o mundo, Camps entendeu que uma crise migratória estava em curso e que algo precisava ser feito.

Ele então passou a oferecer para as autoridades espanholas e gregas, além de organizações humanitárias internacionais, o seu conhecimento e todo o equipamento náutico que tinha à disposição para auxiliar nos resgastes a essas pessoas. Mas depois de dar com a cara na porta em todas as tentativas, decidiu partir por conta própria para a ilha de Lesbos, na Grécia, acompanhado apenas de um amigo e colaborador.

— Para a nossa surpresa, percebemos que milhares de migrantes estavam chegando todos os dias à ilha e que não havia ninguém para ajudá-los, nenhuma organização. Tivemos que resgatar pessoas a mais de 200 metros da praia já no primeiro dia — contou Camps ao GLOBO. — Chegamos no início de setembro para passar um ou dois meses, mas ficamos por dois anos.

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No começo, eram apenas roupas de mergulho, barbatanas, tubos respiratórios e um par de jet-skis — além de um sonho, muita força de vontade e 15 mil euros no bolso (pouco mais de R$ 60 mil em valores da época), com os quais Camps fundou a Open Arms, uma organização não governamental que, a princípio, servia apenas para fins administrativos, garantindo a atuação legal do grupo de salva-vidas na Grécia e permitindo o envio de funcionários de sua empresa para trabalhar nas praias gregas por um tempo, ele diz.

Mas levou menos de dois meses para que a notícia se espalhasse e a Open Arms ganhasse proporções maiores: em outubro, um barco com 400 pessoas afundou no Mar Egeu, e Camps conseguiu resgatar cerca de 260 com apenas duas motos aquáticas, auxiliado por alguns pescadores e outros três socorristas.

— Foram horas e horas de trabalho no mar, vimos muita gente morrer, mas na imprensa nos chamavam de “os salva-vidas espanhóis na ilha de Lesbos” e fizeram até um filme sobre a gente — lembra Camps. — Criamos então um site e um perfil nas redes sociais, recebemos doações e começamos a estruturar melhor a nossa operação.

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Oito anos depois, hoje a Open Arms conta com mais de 400 voluntários e 30 profissionais contratados — incluindo a tripulação e a equipe médica de dois navios — que atuam no Atlântico, no Egeu, no Mediterrâneo e também no sul da Espanha. A organização conta ainda com um projeto educativo em parceria com o Senegal, para alertar a população de diversos países africanos sobre a dificuldade da jornada migratória e o cenário legal encontrado na Europa; e está preparando uma operação de resgate para ajudar os rohingyas de Mianmar que atravessam para Bangladesh, na Ásia, conta Camps.

Guerra e terremoto

Além disso, a ONG enviou ajuda humanitária e equipes médicas para a Síria durante o terremoto de fevereiro que deixou 50 mil mortos e 9 milhões de pessoas afetadas no país e na Turquia; e realizou 17 voos humanitários em parceria com outra organização não governamental, a Solidaire, levando refugiados ucranianos para Paris, Roma, Barcelona, Madri e o Canadá em meio à guerra.

Acostumado ao mar, Camps prefere o trabalho exaustivo de resgate à burocracia dos escritórios de sua organização e de sua empresa. Ao GLOBO, ele disse que ainda hoje participa pessoalmente de 50% a 70% das operações humanitárias da OpenArms, cujo financiamento vem majoritariamente (cerca de 90%) de doações de civis. O restante é patrocinado por governos locais e pequenos conselhos municipais.

— Embora a organização pareça muito grande, é muito pequena e lida com pouco dinheiro — comenta o salva-vidas, destacando que o primeiro primeiro barco utilizado pela ONG, “um veleiro de 30 metros, que não é o mais adequado para resgates, mas era o que tínhamos na época”, foi doado em 2017 por um milionário italiano que mora na Espanha.

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Criminalização

Apesar disso, Camps considera que o principal desafio das operações de resgate humanitário na Europa não é financeiro, mas sim político, mesmo em países com governos ditos progressistas, como o espanhol.

— Em geral, enfrentamos a criminalização das nossas ações pelo setor político em países governados pela extrema direita, como a Itália e a Grécia, que dificultam os esforços de resgate aplicando bloqueios e inspeções severas, fechando portos e usando todo o poder administrativo de um governo, mas isto é algo que a Espanha também faz — afirma. — O governo da Espanha não é tão progressista quanto parece em questões de migração, e muitas vezes cede à pressão da oposição, da extrema direita e do conservador Partido Popular. Digamos que a máquina administrativa do país fica muito lenta quando é um barco humanitário que está solicitando uma permissão para atracar.

Para o salva-vidas, empresário e ativista catalão, “não há e nunca houve uma pressão migratória excessiva sobre a Europa”, como alegam as autoridades do continente. A crise, afirma, “é de falta de empatia e solidariedade”.

— Se olharmos os dados desde 2016, quando as chegadas bateram recordes, fica claro como a Europa dificultou o recebimento de solicitantes de asilo e refugiados: cerca de 90 mil sírios foram mantidos em um campo de refugiados na Grécia por três anos sob a justificativa de que o bloco não tinha capacidade de absorver essas pessoas — explica. — Por outro lado, em 2022, a UE recebeu 5 milhões de ucranianos sem nenhum problema, mesmo eles não pertencendo ao bloco. Ou seja, há uma diferença enorme de tratamento entre o Sul e o Norte e uma crise de solidariedade gigante que precisamos resolver, porque a migração é uma necessidade, não um problema.