Internacional
Expansão do Brics aumenta potencial econômico e geopolítico do bloco, mas com questões éticas a reboque
Entre Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã, apenas país sul-americano é considerado 'livre' por critério internacional
Ao mesmo tempo em que ampliou a relevância econômica e a distribuição territorial do Brics, a expansão anunciada nesta quinta-feira pelos líderes reunidos na África do Sul abre uma margem ainda maior para questionamentos sobre o compromisso com os direitos humanos e os valores democráticos por parte do bloco emergente. Embora China e Rússia já fossem alvo de pressões internacionais por questões internas, cinco das seis nações incluídas no grupo são denunciadas por violações de garantias básicas.
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Seis países farão parte do Brics a partir de 1º de janeiro de 2024: Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. De acordo com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, as nações representam 36% do PIB mundial quando somadas. Em contrapartida, à exceção do país sul-americano (que passa por uma crise econômica severa e um processo eleitoral pautado pela direita radical), todos os outros novos membros são considerados ditaduras por observadores internacionais.
As entradas no grupo não são aleatórias. Antes do encontro em Johannesburgo, 23 países, de Honduras à Indonésia, buscavam uma vaga no bloco, mas garantiram espaço apenas aqueles que, inicialmente, atendiam a interesses geopolíticos no bloco.
— A entrada da Argentina envolve, de um lado, o interesse brasileiro de fortalecer o país vizinho, especialmente em uma situação de crise. Os chineses também tem interesse econômicos e investimentos feitos na Argentina, que já integra a rota da seda de investimentos chineses. Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes ampliam a posição dos países no Oriente Médio e constrói um eixo mais pro China do que Estados Unidos na região — analisou a professora de Relações Internacionais Denilde Holzacker, da ESPM-SP.
Ainda de acordo com a professora, a entrada do Irã atende a um interesse russo, dentro do conceito chinês mais amplo de reforçar sua posição no Oriente Médio, enquanto a posição da Etiópia (bem como do Egito), aumentam a presença africana, sob a liderança da África do Sul.
— Com seis novos membros, o Brics consolida o quadrilátero da Eurásia: fincam o pé no Oriente Médio com grandes produtores de energia e ampliam a presença da África e da América do Sul. O Brics11 é representativo da multipolarização efetiva do mundo, grande interesse nacional do Brasil — disse Ronaldo Carmona, professor de Geopolítica da Escola Superior de Guerra.
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O Irã, que não tem relações diplomáticas com Washington, "é um acréscimo controverso e, sem dúvida, ligado a um pedido da Rússia", que depende do Mar Negro para o comércio, declarou à AFP Gustavo de Carvalho, pesquisador de Relações Internacionais radicado na África do Sul e que estava credenciado para acompanhar a cúpula.
Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos "têm um peso econômico enorme, e o petróleo protege seus interesses", afirmou Chris Landsberg, especialista em Política Externa da Universidade de Johannesburgo.
De acordo com a classificação da Freedom House, que considera 210 países e territórios com a independência contestada (como Crimeia e Tibete), os demais países estão entre as piores posições do ranking, juntamente com China e Rússia, todos eles apontados como "sem liberdade", no critério que considera liberdades individuais e o processo político. A Etiópia ocupa a posição 167 no ranking de 2023, a melhor entre os novos integrantes. A Arábia Saudita ocupa a posição 197.
Entre os países que já estavam no bloco, a África do Sul é a que tinha melhor colocação na lista, ocupando a posição 72 (foi superada pela Argentina, 53º). O Brasil aparece em 81º. Os três são considerados países livres. A Índia é considerada "parcialmente livre", na posição 93.
Entenda as questões polêmicas envolvendo os novos sócios do Brics:
Arábia Saudita
Com a maior produção de petróleo do Oriente Médio e o 17º PIB do mundo, o principado saudita foi o maior acréscimo ao Brics tanto em termo financeiro quanto de contestação a valores democráticos. Com o príncipe Mohammad bin Salman implicado diretamente no assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, esquartejado em um consulado saudita em Istambul, o país é conhecido por ser uma monarquia fechada no que se refere à adoção de padrões internacionais de direitos e garantias.
ONGs internacionais acusam o regime saudita de uma repressão implacável a ativistas, jornalistas e acadêmicos que questionam as violações do regime, utilizando mecanismos como leis antiterrorismo e de combate a crimes cibernéticos contra manifestantes pacíficos. O país também é conhecido por prever em sua legislação penas como chicotadas e morte por decapitação, além de submeter mulheres a leis retrógradas, que sujeitam decisões particulares, como divórcio, herança e custódia dos filhos à tutela do marido.
Na acusação mais recente, a Human Rights Watch afirmou em relatório que guardas da fronteira de regime saudita teriam matado, de forma sistemática e com uso de armas curtas e disparos de artilharia, imigrantes africanos, sobretudo da Etiópia, em um modus operandi que poderia configurar crime contra a humanidade.
Egito
Há dez anos, o Egito parecia destinado a entrar em uma espiral democrática que envolvia países na África e no Oriente Médio — ao menos à primeira vista. Após os eventos da chamada Primavera Árabe, o país do norte da África acabou com um "governo provisório", liderado pelo general Abdel-Fattah al-Sissi, que ainda está no poder.
O país despencou em índices internacionais que classificam liberdades civis, ao mesmo tempo em aumentaram denúncias sobre a perseguição a dissidentes políticos, incluindo o uso de pena de morte para punir réus em casos de violência política. Nos últimos anos, há relato de julgamentos em massa que acabaram com condenações à morte.
Após a realização da COP 27 pelo país, no ano passado, o Parlamento Europeu aprovou uma moção lamentando a "falta de direitos e liberdades políticas fundamentais" no Egito, condenando principalmente "o assédio e a intimidação das autoridades egípcias contra representantes da sociedade civil egípcia, que ocorreu mesmo nas instalações internacionais das Nações Unidas". O documento também condenou "a persistência das detenções arbitrárias e preventivas de dezenas de milhares de prisioneiros de consciência no Egito, muitos dos quais detidos em condições desumanas sem beneficiarem de um julgamento justo ou de direitos fundamentais".
Enquanto o país tem o segundo maior PIB da África (US$ 477 bilhões, atrás apenas da Nigéria), é classificado com alguns dos piores índices de liberdade jornalística (166ª posição entre 180 avaliados, pela Repórteres Sem Fronteiras) e de percepção de corrupção (133ª posição de 180, segundo a Transparência Internacional).
Emirados Árabes Unidos
Parte da ampliação do bloco para o eixo do Oriente Médio, os Emirados Árabes Unidos têm uma economia de US$ 508 bilhões (28º PIB do mundo) e está entre as 10 maiores reservas de petróleo do mundo. Em que pese a tentativa de mostrar modernização para o mundo, o país também é questionado internacionalmente pela ausência de democracia.
Em análise recente sobre a situação dos direitos humanos no regime antes da realização da COP 28, a Anistia Internacional apontou que a lei do país proíbe as críticas ao “Estado ou aos governantes” e impõe punições, incluindo a prisão perpétua ou a pena de morte, por associação a qualquer grupo que se oponha ao “sistema de governo” ou por “crimes” vagos como “prejudicar a unidade nacional” ou “os interesses do Estado”
A organização lembra também que, em 2011, o governo reagiu com uma repressão feroz a uma petição pública que apelava a reformas democráticas, prendendo dezenas de juristas, acadêmicos e funcionários públicos e dissolvendo a direção da Associação de Juristas dos Emirados, da qual dois antigos presidentes tinham assinado a petição pró-democracia. "Atualmente, essas pessoas permanecem presas", diz a ONG.
Em pouco mais de 50 anos de história, os Emirados Árabes só foram presididos por três homens: Zayed bin Sultan Al Nahyan, o unificador do país, e seus dois filhos, Khalifa e Mohammed bin Zayed Al Nahyan, este último, atual presidente.
Etiópia
Menor economia entre os países admitidos no bloco (cerca de U$ 127 bilhões em 2022, o 60º do mundo), a Etiópia é governada por um vencedor do Nobel da Paz que, pouco depois de ser condecorado, liderou uma violenta guerra contra uma minoria étnica, com o governo dos Estados Unidos e ONGs internacionais já apontando preocupações sobre possíveis crimes de guerra e contra a humanidade.
Eleito democraticamente, o primeiro-ministro Abiy Ahmed recebeu o Nobel da Paz ao coordenar os esforços para acabar com a violência entre Eritreia e Etiópia, no chifre da África. O acordo de paz, porém, não incluiu um cessar-fogo prolongado com inimigos em comum na região de Tigré. Em 2020, conflitos estouraram na região, com indícios de participação de tropas do país vizinho na repressão.
Anistia Internacional e Human Rights Watch indicaram, em um relatório conjunto, que os civis da região do norte da Etiópia foram alvos de "uma campanha implacável de limpeza étnica". A "campanha coordenada" teria acontecido "com o consentimento e a possível participação das forças federais etíopes", afirmaram as ONGS.
Há relatos de execuções, expulsões e estupros por forças de segurança e milícias que combatem na região.
Irã
Um dos países mais isolados do mundo, a entrada no Brics é um respiro para um Irã cada vez mais sufocado por sanções internacionais em reprimenda ao regime teocrático. Quase sem nenhuma relação restante com o Ocidente, a aproximação aos países emergentes ocorre principalmente por influência da Rússia, um de seus últimos aliados no cenário internacional, em acordo com os interesses chineses de construir uma posição hegemônica no Oriente Médio.
Embora denúncias de violações de direitos humanos sejam uma constante contra Teerã, a repressão aos protestos populares após o assassinato da jovem Mahsa Amini, sob a guarda da polícia, em setembro do ano passado, jogaram novos holofotes sobre a capacidade do país de debelar iniciativas da população civil com violência. A própria morte de Mahsa, detida pela polícia moral iraniana por não usar hijab em público, exemplifica a rigidez do regime.
Em março, um painel de especialistas da ONU afirmou que a repressão coordenada pelas autoridades iranianas pode equivaler a crimes contra a humanidade.
— Gostaria de reforçar que a morte da jovem não foi um caso isolado, senão o mais recente numa longa série de atos de extrema violência contra mulheres e meninas cometidos pelas autoridades iranianas — declarou Javaid Rehman, relator especial do painel. — Não se pode ignorar a responsabilidade de autoridades do alto escalão, ao instigarem essa violência.
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