Economia

Olho escaneado por US$ 38 em cripto: projeto cadastrou 2,2 milhões de íris em um mês

Worldcoin quer criar RG digital universal rastreando íris, inclusive no Brasil, onde voluntários já aderiram em São Paulo. Iniciativa está na mira de governos, que temem violação da privacidade dos inscritos

Agência O Globo - 21/08/2023
Olho escaneado por US$ 38 em cripto: projeto cadastrou 2,2 milhões de íris em um mês
Foto: REUTERS/Jo Yong-Hak/Direitos reservados fonte: Agência Brasil

Desde o fim de julho, mais de 300 pequenas esferas de metal com sensores ópticos foram enviadas para cidades ao redor de 34 países, incluindo o Brasil. A máquina, chamada de Orb, foi desenvolvida para ser um scanner de olhos. Alimentada por inteligência artificial (IA), ela é capaz de ler as particularidades de uma íris e garantir que se trata de um olho humano. Com isso, obtém um registro único de quem foi "escaneado".

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A invenção, com um quê de distopia, vem da Worldcoin, empresa cofundada por Sam Altman, o principal nome por trás do ChatGPT.

O projeto é ambicioso e envolve algumas frentes. Uma delas é fazer o registro biométrico dos 8 bilhões de humanos na Terra e, com isso, criar uma espécie de "RG Global", o World ID. Em menos de um mês, 2,2 milhões de pessoas foram cadastradas, incluindo brasileiros.

Ao registrar a íris, os primeiros usuários do projeto receberam 25 unidades da moeda digital da Worldcoin (WLD). Nos melhores momentos da criptomoeda, quando ela estava cotada a US$ 2,50, o pagamento equivalia a US$ 62,50 (R$ 312).

Na quinta-feira, a WLD era negociada a US$ 1,54, segundo o site CoinMarketCap, ou US$ 38,50

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A monetização tem a ver com outra ambição de Sam Altman: ter um sistema digital que torne viável a criação de uma renda básica universal.

— Você poderia imaginar um sistema como o Worldcoin sendo usado para renda básica global em algum momento. Temos muito a avançar e muito a crescer economicamente antes de fazer isso, mas algum dia (será possível) — afirmou Altman, em um evento da empresa em junho deste ano.

O projeto funciona em três eixos:

Word ID: verifica a identidade de uma pessoa, com um registro numérico, após o reconhecimento biométrico. A ideia é que ele possa ser usado por empresas e governos como uma "identidade" global.

Worldcoin (WLD): é a criptomoeda criada pela empresa e emitida para todos aqueles que se inscreveram no projeto.

World App: é o aplicativo que conecta o Orb ao usuário no momento do registro biométrico. Com ele, também é possível receber as criptomoedas e negociá-las. A identidade digital também fica registrada no app.

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Para fazer os registros, a Worldcoin estabeleceu diversos pontos de coleta biométrica. No Brasil, eles estão em três endereços, todos no estado de São Paulo. Para participar da experiência, alguns locais pediam agendamento pelo aplicativo.

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O processo é simples e foi realizado pela equipe de reportagem do GLOBO em uma pequena sala de um escritório compartilhado no Itaim, uma das regiões mais ricas da capital paulista. Primeiro, o representante da empresa no Brasil perguntou se o WorldApp estava instalado no celular. Com ele, é feita uma validação daquela usuário para o Orb.

O registro da íris vem na sequência e leva alguns segundos. O operador da Worldcoin explica que uma série de câmeras está por trás de uma espécie de vidro escuro no centro da esfera, para onde é preciso olhar. Com a íris coletada, um código é gerado no app — o que seria o registro da identidade do usuário.

— A íris é usada para eles terem um atributo que é único para cada pessoa. Um código criptografado é gerado a partir daqueles dados — explica Bruno Diniz, fundador da consultoria Spiralem e autor do livro "A Era da Criptoeconomia".

Pagamento em criptomoeda

Pelo próprio aplicativo, o usuário decide se concorda em manter o registro da íris com a empresa ou se prefere que ele seja descartado. No segundo caso, segundo a Worldcoin, a imagem do olho é apagada dos arquivos.

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O "pagamento" em criptomoedas aparece no próprio app. O valor, no entanto, diminuiu em relação ao primeiros "escaneados" do projeto: a equipe de reportagem do GLOBO recebeu apenas três unidades da moeda da WordCoin.

Perguntada pelo GLOBO, a Worldcoin não informou quantos brasileiros cadastraram os olhos e sugeriu que a reportagem acompanhasse os balanços globais, que vêm sendo atualizados em tempo real no site.

Os três locais de coleta em São Paulo foram fechados na última segunda-feira e retomados nesta semana. A Worldcoin não informou o motivo. Em nota, explicou que "os serviços não serão permanentes neste momento", mas que espera estabelecê-los de forma contínua no Brasil.

O que a renda básica tem a ver com o Worldcoin

Um dos eixos fundamentais do projeto é a parte financeira. O manifesto da Worldcoin diz que o aplicativo tem o potencial de "conectar (financeiramente) pessoas em escala global". Seus fundadores citam, por exemplo, a possibilidade de arrecadação de fundos para questões humanitárias.

A empresa também indica que o dinheiro digital "é mais seguro", já que não pode ser roubado ou falsificado, o que pode ser importante para "transações financeiras transfronteiriças instantâneas".

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A possibilidade de receber a moeda virtual após o registro da íris é um dos motivos que têm atraído usuários ao projeto, que gerou filas em algumas das cidades por onde passou, como Tóquio, no Japão, e Nairóbi, no Quênia.

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Entusiasta do universo de criptoativos, o funcionário público Fernando Guimarães viajou do interior de São Paulo, em Santana do Parnaíba, para fazer seu registro com a Worldcoin na capital paulista.

— Todos que participam de um projeto dessa natureza têm o sonho de que se repita o que aconteceu com o Bitcoin, você ter a moeda na carteira, ela valorizar e de repente chegar a milhares de dólares.

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Privacidade: por que o projeto vem sendo questionado

Em alguns países que receberam o projeto, este acabou interrompido pelas autoridades locais. No Quênia, o governo citou preocupações de privacidade de dados e ordenou que a Worldcoin suspendesse a inscrição de novos usuários.

Lá, a empresa pagou em dinheiro vivo aos que se inscreveram no projeto, o que levou a filas de três dias para a realização do cadastro.

Na Argentina, o projeto foi interrompido e depois retomado sob investigação da autoridade nacional de dados. A empresa também é alvo de escrutínio em outros países, como Alemanha, França e Reino Unido. Essa foi uma das preocupações do empreendedor Francisco Lima ao aderir ao projeto:

— Eu entendo todos os riscos de privacidade. Inclusive recomendei que meus parentes não fizessem o registro. Mas é que trabalho com tecnologia, então eu preciso fazer para entender como funciona — conta ele, que cadastrou a íris em São Paulo, na primeira leva de registros do projeto.

Uma das questões levantadas pelas autoridades está relacionada ao responsável final pelo processamento dos dados coletados ao redor do mundo. O formulário de consentimento biométrico da Worldcoin indica que a Worldcoin Foundation, que tem sede nas Ilhas Cayman, é a controladora das informações.

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O site da Worldcoin Foundation explica que a organização é sem fins lucrativos e "sem membros". "Não tem proprietários ou acionistas. É governado por um Conselho com três diretores: Krzysztof Waclawek, Phillip Sippl e Glenn Kennedy", indica a empresa.

O modelo é conhecido como Organização Autônoma Descentralizada (DAO), entidade governada por uma comunidade de pessoas que têm o mesmo poder de decisão.

Worldcoin e a lei de dados no Brasil

No Brasil, para coletar e processar os dados como fez nas últimas semanas, a empresa deve estar em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A forma como a Worldcoin lida com o tema consta em sua política de política de privacidade, atualizada no meio deste ano. O GLOBO enviou as diretrizes para análise de especialistas.

O advogado Renato Opice Blum, especialista em direito digital e sócio-fundador do escritório Opice Blum e Bruno Advogados Associados, diz que a redação da política de privacidade da empresa não fere os princípios da LGPD. Mas pondera que o escrutínio das autoridades é importante:

— No geral, parece estar de acordo com a LGPD. É importante que as pessoas leiam os termos de uso e estejam conscientes de como ele funciona — avalia o advogado. — A investigação de um sistema como esse, amplo e global, que envolve dados sensíveis, é quase que uma obrigação das autoridades. Elas precisam fazer uma investigação de conformidade

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A avaliação de conformidade ou não da política de dados no Brasil é responsabilidade da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), lembra Luis Fernando Prado, sócio do escritório Prado Vidigal Advogados, especialista em privacidade. Especialmente, diz, porque os dados biométricos da íris são sensíveis e "podem sujeitar as pessoas a riscos maiores".

Márcio Chaves, sócio do escritório Almeida Advogados, avalia que o documento está bem estruturado e de acordo com as principais exigências da LGPD. Ele pondera, no entanto, que os canais de comunicação e detalhamentos sobre os processos de privacidade estão em inglês, o que dificulta a compreensão dos termos por usuários não fluentes no idioma.

Em nota, a ANPD informou que está ciente do lançamento do projeto e que eventuais violações à LGPD só serão constatadas após processo fiscalizatório.

"Considerando o recente lançamento da ferramenta, a ANPD avaliará a necessidade de adoção de providências para verificação da conformidade da plataforma com a LGPD", diz o comunicado.